Economia

Será que a indústria vive uma crise terminal?

O ajuste das finanças públicas é importante, mas não pode pôr em risco o crescimento do País no longo prazo, alerta economista

Foto: EBC EBC
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Cada vez mais defasada tecnologicamente, desfalcada pela destruição de ativos e de conhecimento acumulado, ameaçada pela alteração profunda nos mecanismos de financiamento e prejudicada pela asfixia financeira dos órgãos públicos envolvidos em pesquisa, desenvolvimento e inovação, a indústria não pode ficar ao sabor de uma política econômica voltada quase que exclusivamente para o ajustamento das finanças públicas, chama atenção Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), na entrevista exclusiva à CartaCapital.

CartaCapital: Na maior parte das vezes em que a indústria é notícia, não há boas novas para contar e isso vem de tempo, o que parece indicar problemas crônicos. Quais são as principais características da presente crise da indústria brasileira? Poderia apontar os principais fatores determinantes dos problemas atuais?

Rafael Cagnin: A crise industrial do triênio 2014-2016, que ainda está longe de ser integralmente superada, é o capítulo mais recente e mais agudo de uma trajetória de acúmulo de adversidades. A indústria vem perdendo participação na estrutura econômica brasileira nas últimas décadas, em boa medida devido ao desalinhamento de variáveis macroeconômicas. Um quadro de hiperinflação nos 1980, uma abertura comercial abrupta no início dos anos 1990 e episódios prolongados de expressiva apreciação cambial e de elevadas taxas de juros até muito recentemente. Criou-se assim um ambiente de desincentivo ao investimento, que comprometeu a evolução da produtividade e da competitividade sobretudo da indústria, que em geral é um setor mais intensivo em capital, com cadeias produtivas mais longas e maior exposição à concorrência de produtos importados. A esses desafios macroeconômicos somam-se a crescente complexidade e o peso de nosso sistema tributário e as deficiências de infraestrutura. O efeito cumulativo desses fatores negativos ao longo do tempo não deve ser subestimado.

CC: Alguns economistas consideram a desindustrialização do Brasil uma das maiores da história da economia mundial. Concorda com essa informação? Por que?

RC: Não afirmaria que o Brasil é um caso excepcional de desindustrialização, mas não há dúvidas de que o que temos testemunhado aqui não é um processo da mesma natureza por que alguns dos países desenvolvidos passaram. No nosso caso, a desindustrialização é prematura, por que ocorre em um nível relativamente baixo de renda per capita, implica declínio da participação industrial tanto no valor adicionado como no emprego total e, neste último caso, tendo sido compensado por ocupações no setor de serviços de baixa qualificação e de baixa produtividade.  Vale lembrar ainda que nem todos os países desenvolvidos viram um recuo acentuado da participação de sua indústria. Tal fenômeno foi muito menos intenso na Alemanha, por exemplo.

CC: Como se situa a indústria brasileira em relação às dos países avançados e às dos emergentes bem-sucedidos no quesito de atualização tecnológica?

RC: Cada vez mais defasada. Isso devido ao bloqueio do investimento nos anos recentes de crise no Brasil, mas também porque o restante do mundo caminha a passos largos em direção a uma nova revolução tecnológica. As principais potências industriais do mundo, sejam elas desenvolvidas, como EUA, Alemanha e Japão, sejam elas emergentes, como a China e a Índia, estão seriamente comprometidas com estratégias industriais que acelerem o desenvolvimento, produção e difusão de máquinas, equipamentos e insumos que articulam robotização, inteligência artificial, big data, nanotecnologia, impressão 3D e outras inovações subjacentes ao que vem sendo chamado de indústria 4.0.

CC: Segundo o Industrial Research and Innovation Monitoring and Analysis (IRIMA), da Comissão Europeia, só sete empresas do Brasil — Embraer, Vale, Petrobras, Totvs, Weg, CPFL Energia e Braskem — figuram entre as 2.500 que mais investem em pesquisa e desenvolvimento no mundo. Quais as causas da quantidade diminuta de empresas que investem significativamente nisso no Brasil e as consequências para o País da crescente transferência do controle dessas companhias para grupos transnacionais?

RC: A despeito das dificuldades que nosso sistema industrial enfrenta, o Brasil possui empresas que são verdadeiras ilhas de excelência, competitivas, internacionalizadas e comprometidas com pesquisa, desenvolvimento e inovação. A questão da aquisição dessas empresas por grupos internacionais até pode trazer riscos de transferência para o exterior de suas atividades inovativas, mas este risco já existe e não depende diretamente da estrutura acionária da empresa.

Frente aos mecanismos insuficientes de financiamento da inovação, de dificuldade no estabelecimento de parcerias entre empresas e universidades e a escassez de parceiros inovadores enquanto fornecedores, clientes e mesmo concorrentes podem muito bem estimular a criação de laboratórios em países com estrutura mais avança de P&D&I. Algumas das fragilidades de nosso sistema de inovação se tornam bastante evidentes em períodos como o que temos passado.

Por mais fundamental que seja, o ajustamento das finanças públicas nos últimos anos tem comprometimento o orçamento de importantes órgãos públicos envolvidos com P&D&I, tais como CNPq, Finep etc., pondo em risco a trajetória de crescimento do país no longo prazo.

CC: Como e por que tornou-se dominante a visão de que o competitivo agronegócio brasileiro seria suficiente para o desenvolvimento do Brasil e portanto o fortalecimento e o avanço da indústria não seriam tão importantes quanto costumam sublinhar os industriais e vários economistas?

RC: Para além de interesses objetivos, as diferentes visões a respeito decorrem de algo bastante comum no debate econômico: filiações teóricas distintas, que levam, por exemplo, a dar maior ou menor importância às interações intra e intersetoriais, à criação de vantagens competitivas etc.

Assumindo que o processo de desenvolvimento econômico implica a diversificação e complexificação das atividades econômicas, de modo a criar competências que não existiam antes, não há nenhum equívoco em se buscar o desenvolvimento a partir da cadeia agropecuária ou ainda do setor extrativo, isto é, em áreas onde o país demonstra vantagens comparativas. É desejável que avancemos na agregação de valor a essas cadeias, o que, em síntese, significa promover a transformação industrial de seus produtos primários. Quanto a isso não me parece haver dissenso. O que não pode haver é a destruição de ativos e de savoir-faire industrial já acumulados pelo Brasil ao longo dos anos. É o passo à frente, não atrás que é preciso dar.

Tampouco se deve subestimar o fato de que é a indústria, ou alguns de seus ramos, cada vez mais em relação com atividades de serviços sofisticados, o eixo central da inovação e, consequentemente, do crescimento da produtividade ao longo do tempo. É ela quem traduz os avanços científicos em novos insumos, máquinas e equipamentos, com capacidade de revolucionar a própria indústria, mas também o conjunto de setores econômicos.

CC: Quais as perspectivas do crédito e do financiamento para a indústria?

RC: O que está no radar nos próximos anos é uma alteração profunda nos mecanismos de financiamento no país, com a redução da importância relativa dos canais de crédito oficial. Isso afeta a indústria, mas não apenas, pois o financiamento rural e o imobiliário também contam com circuitos de crédito regulado.

Como o IEDI aponta há muito tempo, a diversificação das fontes de financiamento no país e a menor dependência do crédito direcionado são mudanças necessárias e corretas. Seria muito mais adequado, porém, que ela derivasse do desenvolvimento de novos canais e não do encolhimento daqueles já em operação. Por isso, a depender de como for realizada, corre-se grande risco de estreitar ainda mais a fração das operações em condições adequadas ao financiamento do investimento produtivo no país.

CC: Como analisa as tendências dos mercados interno e externo para a indústria?

RC: São grandes as expectativas de que a recuperação industrial realmente engrene a partir de 2019, o que é bastante compreensível depois da gravidade da crise recente e da recuperação insuficiente dos últimos dois anos. Entretanto, é preciso ter em conta que ainda existem desafios importantes.

No front interno, melhoras adicionais dependem muito da agenda de políticas do novo governo, sobre a qual ainda pairam incertezas, dado o frequente ruído de comunicação entre os membros da equipe e as idas e vindas em decisões. Há riscos no horizonte, a exemplo das mudanças na estrutura de financiamento, comentadas anteriormente.

No front externo, por sua vez, a tendência é de desaceleração, o que não ajuda em nada os setores mais exportadores. Agora em janeiro, por exemplo, o Banco Mundial cortou de 4,2% para 3,6% sua projeção para o crescimento do comércio internacional, em continuidade a um movimento já verificado em 2018. A indústria automobilística, que vem liderando a reação industrial, com a contribuição de suas vendas externas ainda deverá enfrentar os efeitos da deterioração econômica da Argentina.

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