Economia
Sem fumaça
O governo federal estabelece uma abrangente política de combustíveis renováveis


Com o lançamento do Programa Combustível do Futuro na quinta-feira 14, o governo Lula completa o tripé de sustentação da sua estratégia para a descarbonização e o enfrentamento das mudanças climáticas, além de indicar um rumo para a indústria e o setor de transportes. Ao mesmo tempo, aponta o caminho para a inserção internacional do Brasil no momento em que há uma corrida de países e empresas para remontar as cadeias produtivas globais em bases estáveis e a partir de energia limpa. Além do programa, apoiado na autossuficiência do País em combustíveis renováveis, o tripé inclui a bioeconomia e a preservação ambiental e conta também com forte inserção internacional. O conjunto constitui, segundo alguns especialistas, o maior projeto de descarbonização do mundo.
O programa consiste em um conjunto de iniciativas para reduzir a dependência de combustíveis fósseis e a emissão de gases de efeito estufa, com previsão de investimentos de 250 bilhões de reais. O lançamento ocorre uma semana depois do anúncio, por Lula, pelo premier indiano Narendra Modi e pelo presidente norte-americano Joe Biden, em reunião paralela à do G-20, da Aliança Global de Biocombustíveis, grupo com 19 países que, segundo a coordenação do encontro, “pretende acelerar a adoção global de biocombustíveis, facilitar os avanços tecnológicos, intensificar a utilização de biocombustíveis sustentáveis e moldar o estabelecimento de padrões robustos e a certificação através da participação de um amplo espectro de partes interessadas”. A aliança também funcionará como um repositório central de conhecimento e um centro de especialistas. A GBA visa ainda servir como uma plataforma de promoção da colaboração global para o avanço dos biocombustíveis. Brasil, Índia e EUA estão entre os cinco principais produtores de etanol do mundo.
A contribuição decisiva da tecnologia e da experiência acumulada do Brasil para a Índia aumentar a adição de etanol à gasolina é uma credencial importante do País na Aliança. De menos de 2% de etanol misturado na gasolina, aquele país chegou a 10% e pretende atingir 20% em dois anos.
O programa prevê 250 bilhões de reais em investimentos
O Projeto de Lei do Combustível do Futuro aumenta o teor de etanol na gasolina, de 27% para 30%, e estabelece medidas para estimular o uso de combustíveis sustentáveis no setor de transportes, a exemplo do diesel verde, um combustível renovável, produzido a partir de óleos vegetais, inclusive de soja, ou gorduras animais. A proposta traz também um marco legal para a realização da captura e estocagem de dióxido de carbono e encarrega a Agência Nacional do Petróleo, do Gás Natural e dos Biocombustíveis, a ANP, de regular a produção e distribuição de combustíveis sintéticos. Outro objetivo é integrar os compromissos de descarbonização da Política Nacional de Biocombustíveis, do Programa Rota 2030 de Mobilidade e Logística, e do Programa de Etiquetagem.
A nova política determina o aumento gradual da mistura de combustíveis sustentáveis à gasolina de aviação, a partir de 2027, com um teor mínimo de 1% de renováveis, de modo a atingir 10% em 2037. O projeto cria também o Programa Nacional de Diesel Verde e estabelece que, até 2037, o governo deverá fixar, a cada ano, a participação mínima obrigatória de diesel verde no diesel fóssil. Um exemplo do grande potencial dos biocombustíveis, além do etanol, é o do óleo de palma, principal matéria-prima para a produção do Combustível Sustentável de Aviação e de Diesel Verde. A palma produz dez vezes mais óleo por hectare do que a soja, também utilizada para a produção de biocombustíveis.
Segundo a empresa Brasil BioFuels, o cultivo da palma segue uma das legislações mais rígidas do mundo, o Zoneamento Agroambiental da Palma, aprovado em 2010. De acordo com um decreto do governo federal, ela só pode ser cultivada em áreas degradadas da Amazônia. Hoje, há 31 milhões de hectares nessa situação, na Região Amazônica, em áreas identificadas em estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Apenas 200 mil hectares, contudo, são efetivamente utilizados no País para essa finalidade, segundo a BBF. O fato de o cultivo da palma não possibilitar o uso de máquinas faz com que a atividade seja, necessariamente, grande geradora de emprego local.
Em relação ao uso, o programa Combustível do Futuro abarca o etanol e outros biocombustíveis para motores a combustão de automóveis, caminhões e máquinas agrícolas, o bioquerosene para aviões e o combustível de baixa emissão para navios. Na indústria automobilística, o etanol e outros biocombustíveis ganham, a partir do plano, proeminência em relação à energia elétrica, em um cenário que antes tinha como principal referência a definição do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, e da Associação Nacional de Veículos Automotores, de que cada montadora deveria optar pelas rotas tecnológicas que considerasse mais adequadas, no que diz respeito aos combustíveis dos veículos fabricados. A referência persiste, mas a determinação do governo de impulsionar o etanol e outros biocombustíveis reforça a decisão de várias montadoras que já optaram pelo etanol como combustível preferencial para seus modelos. Essas indústrias já superam, em número, aquelas com preferência pela produção de carros elétricos.
Integrante da comitiva presidencial que viajou para a 78ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, esteve em Nova York com empresários para apresentar o plano de transição energética do Brasil e convidou as companhias norte-americanas a se instalarem no País, que tem a matriz energética mais limpa do planeta.
É importante ressaltar que, apesar da clara preferência do governo pelos biocombustíveis, não se trata de uma opção excludente, como evidenciam tanto as preferências de algumas montadoras pelo carro elétrico quanto os estímulos à instalação da chinesa BYD na Bahia. Maior montadora global de elétricos, a empresa definiu o Brasil como peça fundamental da sua expansão e ocupará o lugar da Ford, que chegou a ter 5 mil empregados na unidade baiana, mas decidiu abandonar o Brasil em 2021, devido à falta de perspectivas para a economia na gestão Bolsonaro.
O etanol já é o combustível preferencial de boa parte das montadoras – Imagem: Prefeitura de Jundiaí e Bryan Bedder/Getty Images/AFP
Com inauguração prevista para o próximo mês, a BYD contará com redução de 95% do ICMS e de 75% do Imposto de Renda. Segundo a companhia, uma das motivações para a compra do elétrico no Brasil, apesar do preço elevado, é o seu baixo custo de abastecimento, de 32 reais a carga completa da bateria, em comparação com os 250 reais para completar o tanque de um automóvel comum. Fabricantes de carros elétricos argumentam que, em cerca de dois anos, eles deverão custar o equivalente ao preço dos automóveis a combustão. Defensores do carro a álcool alegam, com razão, que não existe infraestrutura de abastecimento disponível no País e apontam a demora e o alto custo de implantação dessa rede como sérias limitações. Destacam também o fato de o carro elétrico não melhorar de modo significativo a descarbonização, em relação a um veículo movido a etanol.
Uma pesquisa realizada pela Stellantis, que reúne as marcas Fiat, Alfa Romeo, Chrysler e Peugeot até Citroën, Maseratti e Jeep, aponta que o veículo movido pelo etanol brasileiro é menos nocivo ao meio ambiente do que a média dos veículos elétricos europeus. Stellantis, Toyota, Volkswagen e Renault, entre outras, estão voltadas, no Brasil, para o carro movido a etanol e modelos híbridos, enquanto a General Motors decidiu passar direto do carro movido a combustível fóssil para os veículos elétricos, somando-se à BYD e outras montadoras chinesas que competem nesse segmento.
A Anfavea protestou contra recordes de importação de carros elétricos chineses nos últimos meses, considerados “uma ameaça ao mercado brasileiro e aos mercados vizinhos atendidos pela indústria brasileira”. A entidade defende a fixação de um limite às compras de veículos elétricos livres do imposto de importação e reivindica a elevação gradual da taxação dos carros elétricos importados, de zero para 35%. O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, é favorável à desoneração de carros elétricos produzidos no Brasil, “como forma de estimular a introdução da tecnologia”, e declarou-se contrário ao imposto zero para a importação de produtos acabados.
Estratégia. Os carros elétricos só devem receber benefícios tributários se produzidos no Brasil. Haddad viajou para Nova York para atrair investidores
Segundo Uallace Moreira, secretário do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a tarifa de importação de carros elétricos será adotada de maneira gradual e não vai colidir com o plano do governo de ampliar investimentos privados em tecnologia verde.
O lançamento do Programa Combustível do Futuro, no contexto da formação da Aliança Global de Biocombustíveis, é um avanço no percurso sinuoso do Brasil rumo à pretendida liderança global em energia limpa, marcado pela preferência explícita de Lula, sem condicionalidades, pela exploração de petróleo na margem ocidental do Rio Amazonas.
O aumento expressivo da participação do etanol na mistura com a gasolina retoma a ascensão gradual do uso desse combustível na matriz energética desde 90 anos atrás, quando o presidente Getúlio Vargas criou o Instituto do Açúcar e do Álcool e determinou, pela primeira vez no País, a adição de 5% de álcool nacional à gasolina, obrigando os distribuidores de combustível a adquirir previamente o produto brasileiro para só depois terem liberadas as guias de importação de derivados do petróleo.
A decisão era parte da “tentativa de constituição de uma nova ordem capitalista, que reconhecia o direito à propriedade privada, mas ao mesmo tempo previa a necessidade de um planejamento econômico baseado na centralização das decisões, na racionalidade administrativa e nas soluções ditadas pela eficiência técnica”, registrou o historiador Lira Neto. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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