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Segunda marcha

O País cresce acima do esperado no trimestre, mas só o aumento da demanda vai superar os danos da política monetária

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Foto: /GM Brasil e iStockphoto
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Impulsionado por uma conjugação excepcional de fatores positivos para a agricultura, que avançou 21,6%, o PIB superou todas as projeções e cresceu 1,9% no trimestre, mas o momento coincide com o auge dos efeitos negativos da política monetária na economia e a consolidação de uma expectativa favorável requer a intensificação dos esforços para aumentar a demanda interna, apontam os números e algumas análises. “O PIB do primeiro trimestre veio bem mais forte que o esperado, em grande medida por causa da agricultura, isso vai impactar no próximo trimestre em exportações também, mas alguns setores ainda precisam se fortalecer, caso da indústria, que está no negativo, porque é a que mais sofre com os efeitos da taxa de juros e do mercado de crédito contraído”, sublinha Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Por efeito do chamado carregamento estatístico de 2,4% para o ano, acrescenta Mello, na prática, se o PIB não avançar mais nada nos próximos três trimestres, no fim do ano o crescimento será de 2,4%. “O nosso trabalho agora é dar tração e força para a economia doméstica, que vinha em um processo de forte desaceleração desde o ano passado e as políticas públicas estão todas voltadas para isso, para fortalecer a demanda interna, em particular o consumo das famílias”, diz o secretário. O primeiro trimestre não captou o aumento do salário mínimo, concedido em maio, pouco reflete o novo Bolsa Família e ainda não retrata o Programa Desenrola, recém-definido. Mais adiante haverá os efeitos no emprego e na renda do Minha Casa Minha Vida. “Achamos que é possível, nos próximos trimestres, em especial a partir do segundo, ocorrer um efeito um pouco maior desses programas”, aponta Mello.

Por outro lado, diz, o segundo trimestre é o momento de maior impacto da política monetária contracionista. “Ao mesmo tempo que aqueles programas puxam a demanda para cima, a política monetária segura o investimento, e mesmo o gasto das famílias. Há, portanto, pressões para maior crescimento e para menor crescimento atuando de modo simultâneo e vamos ver qual vai ser a resultante.”

“O nosso trabalho agora é dar tração e força para a economia doméstica”, diz Guilherme Mello, secretário de Política Econômica

O resultado do trimestre é considerado muito positivo por apontar um crescimento mais forte sem pressão inflacionária, até porque uma parte relevante do avanço do período vem da produção agrícola, que joga o preço dos alimentos para baixo, como é possível constatar no declínio dos indicadores do atacado e dos alimentos consumidos em domicílio. “O ­País tem conseguido crescer mais com menos inflação, tudo o que a gente quer. Se conseguirmos manter isso fortalecendo o mercado doméstico e recuperando o mercado de crédito aos poucos, com o Programa Desenrola e as novas linhas do BNDES que estão surgindo, e ainda um ciclo de redução da taxa de juros que se inicia agora no segundo semestre, acho que poderemos ter novas surpresas positivas. Desta vez vindas não só da agricultura, mas também do setor de serviços e, talvez, até o fim do ano, com um início de recuperação da indústria.”

O principal problema é a política monetária, que começa a ter efeito nove meses depois da implantação e atinge plena intensidade entre um ano e um ano e meio a partir do seu início. As condições do mercado de crédito, afirma Mello, têm se deteriorado desde a metade do ano passado, reduzindo o volume de novas concessões e aumentando o preço do crédito. Isso se acentuou com o caso da Lojas Americanas, em particular no mercado de capitais.

A aprovação do novo arcabouço fiscal e o recuo continuado das taxas de juro de longo prazo indicam mudança de expectativas e há uma aposta no efeito conjunto dos programas e iniciativas. A combinação de aumento do salário e da renda, não só por conta do Bolsa Família, mas devido ao efeito da queda da inflação na elevação do poder aquisitivo, tende a fortalecer a demanda das famílias. O secretário acrescenta ainda os seguintes fatores: 1. os desdobramentos do Programa Desenrola, com retirada de milhões de Consumidores do cadastro negativo e sua reinserção no mercado de crédito. 2. O novo aumento do salário mínimo, concedido em maio. 3. A desoneração do Imposto de Renda, que impacta quem ganha até dois salários mínimos, porque o contribuinte para de recolher e isso aumenta os recursos disponíveis. 4. Os efeitos dinâmicos do Minha Casa Minha Vida. 5. O Programa de Aquisição de Alimentos, com compras públicas de alimentos que ajudam o pequeno agricultor e a baixar a inflação. 6. Um novo programa de investimento em finalização, com Parcerias Público-Privadas e outros componentes.

Incentivos. Para impulsionar a construção civil e o consumo das famílias, o Palácio do Planalto aposta no Minha Casa e no Desenrola – Imagem: Tomaz Silva/ABR e Hugo Cruz/Iscte

“Isso tudo leva a crer que vamos sair de um crescimento mais forte, puxado pela produção agrícola, para um crescimento não tão forte, porque ainda teremos uma situação de desaceleração provocada pela política monetária, mas mais sustentado, puxado, nos próximos trimestres, por outras variáveis de demanda”, ressalta Mello. No momento, diz, há um processo de transição, pois as variáveis de demanda se desaceleravam e o conjunto de medidas tomadas ajudará a aumentar a renda, o emprego e o crédito, portanto, a demanda doméstica vai se recuperar ao longo do tempo.

O crescimento do PIB no terceiro trimestre conduz a uma reavaliação das expectativas muito pessimistas que predominaram desde o início do ano, assinala a economista Júlia Braga, coordenadora de Acompanhamento e Estudos de Conjuntura Econômica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A política monetária, explica, tem uma força no sentido de frear a atividade econômica, porque as famílias estão endividadas no cartão de crédito. Aumentou, portanto, o comprometimento da renda para o pagamento de juros da dívida.

Existe uma força, contudo, dada pelas políticas de impulso fiscal que foram viabilizadas por causa da negociação da PEC da Transição com o aumento orçamentário. Essas políticas permitem um aumento real do salário mínimo e dos ganhos do funcionalismo e dos pensionistas, por estarem atrelados ao mínimo, portanto, existe uma elevação, em relação ao mesmo período do ano passado, da massa salarial e da renda das famílias.  “Mesmo que tenha desacelerado um pouquinho, na margem, em relação ao ano anterior, o que importa quando a gente vai olhar o PIB, há um aumento forte da massa salarial, de 10% acima da inflação entre janeiro e abril, segundo a Pnad”, sublinha a pesquisadora. “Isso traduz um certo viés anticíclico, exatamente o que se espera da política fiscal, porque o mundo está em uma fase de desaceleração e a política monetária também joga nesse lado da desaceleração. Portanto, a política fiscal cumpre o seu papel anticíclico neste ano, por causa da negociação mencionada.” Essas medidas, acrescenta, acabam por dar sustentação ao consumo interno. Há o consumo do governo, que também acaba por aumentar.

Em contrapartida, há o componente do investimento, mais sensível a juros. “Existe, assim, uma força que puxa para cima, outra que puxa para baixo, mas, no geral, não há mais aquele cenário totalmente pessimista de antes, quando todos só estavam vendo as forças recessivas, sem levar em conta que era possível implementar uma política que pudesse de alguma forma se contrapor àquelas forças.”

O País tem conseguido crescer mais com menos inflação

Do lado da oferta, destaca-se o número excepcional da agricultura, motivado por uma conjugação histórica muito rara de fatores que impulsionaram o lucro do setor, a começar pelo aumento do preço internacional das commodities, por efeito da pandemia e da guerra da Ucrânia. O preço internacional da soja, ressalta Braga, mesmo com a queda recente das cotações, está 50% acima daquele de antes da pandemia e ainda é, portanto, um negócio muito rentável. Além disso, o clima foi favorável. Acrescente-se que o setor havia investido, aproveitou a época de juros baixos e modernizou as frotas de tratores agrícolas, agora superprodutivos. É preciso levar em conta também que a concorrente Argentina teve um problema climático. “Foi a ação conjunta desses fatores favoráveis que viabilizou a supersafra”, sublinha Braga.

O mercado esteve muito mais pessimista, mas passou a reavaliar as expectativas ao longo do trimestre e isso pode ­continuar a acontecer. Vários bancos e outras instituições financeiras elevaram suas projeções a partir desse aumento muito forte do primeiro trimestre. “Em relação ao PIB do primeiro trimestre, é preciso ressaltar que o consumo das famílias praticamente estagnou na margem, enquanto os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) e as importações tiveram quedas fortes. Isto é, a demanda doméstica sofre os efeitos da política monetária. O que deve se prolongar e intensificar”, alerta o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco Lima Gonçalves. Quanto à presença dos efeitos da política monetária, Gonçalves observa que a estatística esconde, devido à sua própria construção, a renda e o crédito. “Na agropecuária, por exemplo, as decisões de plantar e maturar animais para o abate são tomadas com boa antecedência, de modo que não refletem as condições econômicas e financeiras quando da safra, a exemplo da taxa de juros. Em segundo lugar, o setor produz eminentemente para o mercado externo. Ou seja, agropecuária não significa emprego e renda melhores. Além do mais, seus efeitos sobre outros setores da economia local estão incluídos no PIB desses segmentos: bens de capital e transportes, por exemplo, além do crédito concedido a esses setores. Por fim, a produtividade e a produção do agro cresceram fortemente nos últimos anos. As exportações são fortes, entram dólares. Mas o emprego no agro é cadente e a renda, concentrada.” •

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Segunda marcha’

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