Economia

“Se você fica doente ou se machuca, você está ferrado”

As condições de 5,5 milhões de brasileiros que, segundo levantamento do Instituto Locomotiva, então cadastrados em plataformas de entregas

(Foto: Reprodução/Facebook)
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No horário do almoço ou do jantar, a avenida Paulista, em São Paulo, se transforma em um vai e vem de motos, bicicletas e patinetes com mochilas e vestimentas das cores de players milionários como o laranja da Rappi, o vermelho do IFood, o verde do Uber Eats e o azul Loggi. Em 2018, apenas o mercado de delivery de alimentos lucrou 11 bilhões de reais, segundo a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) e os e-commerces chegaram a 53,2 bilhões, segundo a EbitNielsen.

Em um mundo cada vez mais tecnológico, os aplicativos de entregas surgiram como opção para 1,8 milhão de pessoas que estão desempregadas na região metropolitana da capital paulista, segundo dados de 2018 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos). No entanto, é um campo de atuação perigoso, com condições de trabalho precárias, em que os entregadores ficam expostos à chuva, ao sol e a acidentes de trânsito por longas jornadas de trabalho, como explica o presidente do SindimotoSP, Gilberto Almeida Dos Santos.

“As empresas de aplicativo trouxeram coisas boas como a tecnologia e a empregabilidade, mas não se atentaram às regras, às leis trabalhistas e às leis que regulamentam a atividade de motofrete no Brasil e na cidade de São Paulo”, comenta o representante do sindicato de motofretistas. Marcelo Ramalho, que virou entregador em 2013 por conta de necessidades financeiras, está cadastrado em todos os principais aplicativos e afirma que é uma profissão estressante: “É loucura porque é corrido e o trânsito em São Paulo é caótico”. Apenas no primeiro trimestre de 2019 – de janeiro a março – houve 208 mortes no trânsito da capital paulista, em que 70 eram motociclistas.

Em 2015, uma pesquisa com 194 motoboys realizada na Unicamp, para a tese de doutorado do psicólogo Alex de Toledo Ceará, revelou que os níveis de estresse na profissão são altíssimos e que a maioria dos acidentes está relacionado ao desgaste emocional. Irritabilidade, insônia, gastrite e outros sintomas do estresse aumentam em 48% as chances do entregador de sofrer um acidente. “Qualquer acidente de moto custa caro e o entregador fica desamparado de todas as formas”, comenta o presidente da SindimotoSP.

“A Loggi e a Uber dizem que têm seguro, mas não sei se na prática realmente têm. Um amigo meu se acidentou e não recebeu nada. Ele tinha acabado de terminar a entrega, estava com o aplicativo aberto, esperando a próxima. E não ajudaram em nada”, conta o motoboy Marcelo Ramalho. Em grupos do Facebook, em que entregadores de diversos aplicativos se reúnem para trocar dicas e experiências, eles comentam que o Uber Eats assegura apenas enquanto as entregas estão sendo realizadas. Os outros aplicativos deixam a desejar quanto a isso, afirmando que não há vínculos de trabalho, já que os entregadores são apenas prestadores de serviço.

Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese, esclarece que essa distinção entre prestador de serviços e trabalhador ocorre para as empresas não ter que pagar 13º, férias, nem se responsabilizarem por acidentes. “Se você fica doente ou se machuca, você está ferrado. É você com você mesmo. Essa loucura é chamada terceirização.” Ele afirma que esta forma de organização da economia traz para o trabalhador precarização, insegurança no trabalho, arrocho salarial, desproteção sindical e descontinuidade de vínculo laboral. “É uma forma de tirar a responsabilidade da empresa e jogar para o trabalhador. Estamos responsabilizado os trabalhadores por coisas que eles não podem ser responsáveis.”

O líder do SindimotoSP concorda: “Neste modelo de negócio que os aplicativos de entrega estabeleceram, os entregadores não têm direito a nada, nem a reclamar”. Sua visão como sindicato é de que, em casos de acidentes, a responsabilidade deveria ser do aplicativo, que solicitou a entrega. “A gente quer que as leis trabalhistas sejam respeitadas.” Os aplicativos ainda são recentes e não há regulamentação. O sindicato luta para que o Poder Judiciário reconheça os vínculos trabalhistas que a categoria de motofretistas afirma existir e, dessa forma, garanta seus direitos. Eles reivindicam cargas de horário decentes e seguros de vida, para estarem “amparados pelo mínimo que merecem, porque é uma atividade de risco e a qualquer momento o cara pode sofrer acidente”, entoa o sindicalista.

“Em todos os aplicativos que você vai, eles falam que você é um prestador de serviço. A gente arca com tudo sozinho”, comenta o motoqueiro e entregador Marcelo Ramalho. Ele conta que não há lugar para comer, beber água ou ir no banheiro. “Os estabelecimentos não deixam usar, tem que ir em shopping.”

Essas são as condições de 5,5 milhões de brasileiros que, segundo levantamento do Instituto Locomotiva, então cadastrados em plataformas de mobilidade e de entrega de produtos. Segundo a pesquisa realizada pelo doutor da Unicamp, os motoqueiros se sentem discriminados pela sociedade, como se fossem vistos apenas como transgressores do trânsito e não como trabalhadores. “Criticam porque os motoboys correm, só que ninguém aceita pizza fria e nem documento após o horário bancário. A sociedade depende deles, porém faz com que trabalhem demais”, elucida o pesquisador.

O motofretista Ramalho comenta que consegue lucrar mais em horário de pico e quando chove, quando os aplicativos realizam promoções, com recompensas salariais extras. Isso estimula os entregadores a tentar realizar mais corridas durante esses períodos. Tal dinâmica é proibida segundo a Lei nº 12.436, criada em 2011, que proíbe práticas que estimulem o aumento de velocidade. Dessa forma é ilegal oferecer prêmios por cumprimento de metas por números de entregas ou prestação de serviço.

A situação das bicicletas ainda é muito precária, segundo o presidente do SindimotoSP. “O motofrete já está regulamentado faz um bom tempo. Para as bicicletas não tem lei, não tem nada. Eles só têm o direito de sair pedalando em um trânsito muito louco, que mata e que sequela. A situação é até mais precária que os motociclistas”.

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