Economia
Sanções à Rússia também prejudicam a UE e aumentam o poder do Oriente
Parcerias com a China e outros países antes da invasão fortalecem a posição do Kremlin


Concluir, em relação à guerra na Ucrânia, que a Rússia está economicamente isolada e basta os Estados Unidos e seus aliados aumentarem as sanções para Vladimir Putin ser derrotado talvez seja um dos erros mais graves da análise predominante sobre o conflito. A interpretação é equivocada por não levar em conta a situação preexistente da Rússia, que desde a guerra com a Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014 enfrenta punições econômicas impostas pelos EUA e construiu uma forte articulação com países da Ásia e da África para sobreviver ao cerco ocidental, dizem economistas e especialistas em relações internacionais do País e do exterior.
“O resultado da reunião extraordinária da Assembleia-Geral da ONU, realizada em 2 de março, que aprovou uma resolução contra a invasão russa da Ucrânia, requer um exame cuidadoso. Na votação, 141 países se posicionaram contra a ação da Rússia, mas 35 se abstiveram e 5 votaram a favor, e outros 12 países não participaram”, enumera William Nozaki, coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Os 40 países que votaram a favor da Rússia ou se abstiveram, diz, respondem pela produção de mais de 29 milhões de barris de petróleo por dia, o que é mais da metade da produção sob a influência dos países que votaram contra, como mostram dados de 2020, da British Petroleum.
Entre os expressivos 141 votos anti-Rússia e os óbvios 5 votos, prossegue Nozaki, há uma área intermediária de abstenções e isenções que merece exame detalhado. O presidente russo contou com a neutralidade de países importantes como Índia, China e África do Sul. O único dos BRICS a votar contra foi o Brasil. Além disso, países importantes na África, na Ásia e no Oriente Médio declararam-se neutros. Trata-se de um conjunto significativo em território, população e recursos estratégicos. No trabalho intitulado “Acordos energéticos e militares bloqueiam o isolamento da Rússia”, publicado pelo Ineep, Nozaki e Rodrigo Leão, também coordenador-técnico da entidade, esmiúçam a rede de interesses econômicos e geopolíticos que ancora a posição russa.
A preparação da Rússia para fazer frente ao cerco ocidental começou há mais de 20 anos. “A guerra com a Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014 abriram as portas para sanções econômicas lideradas pelos EUA destinadas a punir a Rússia por suas ações. Essas sanções, quando combinadas com medidas semelhantes dos EUA contra o Irã, forçaram a Rússia a enfrentar a realidade de que a era da associação econômica irrestrita com o Ocidente estava terminando”, destaca Scott Ritter, inspetor-chefe de armas da ONU no Iraque de 1991 a 1998, no artigo “The Great Decoupling: How Western Sanctions Are Pushing Moscow East”, publicado na newsletter Energy Intelligence.
Parcerias com a China e outros países antes da invasão fortalecem a posição do Kremlin
Na antevéspera da guerra, a Rússia reforçou suas conexões não ocidentais. Sobressai, segundo Nozaki, o conjunto dos 28 acordos firmados no fim do ano passado com a Índia envolvendo os setores energético e naval, com metas anuais de 30 bilhões de dólares em fluxo comercial e de 50 bilhões em fluxo de investimento, com desembolsos previstos em rublos e rúpias e transações fora do sistema Swift, entidade que realiza transações bancárias internacionais em mais de 200 países. Nos acordos com a Índia, entre outros, a Rússia certamente se preparava para um bloqueio dos seus bancos nessa interface financeira, o que iria acontecer no início de março, mas com eficácia apenas parcial. Na cúpula de Bruxelas realizada no fim do mesmo mês, vários países, entre eles Alemanha, Áustria e Hungria, manifestaram receio dos possíveis efeitos de uma interdição financeira sobre o suprimento de gás russo. Acrescente-se que, ainda que houvesse suspensão total dos bancos russos no Swift, há o exemplo do Irã, que encontrou maneiras de sobreviver após ter sido bloqueado nesse sistema em 2012.
Entre os numerosos exemplos de expansão econômica rumo ao Oriente, destaca-se a construção do gasoduto que completará a ligação para fornecer até 50 bilhões de metros cúbicos de gás natural à China, segundo contrato assinado em fevereiro. O contrato foi assinado pouco depois da sanção alemã ao gasoduto Nord Stream 2, projetado para transportar gás à Alemanha. Outro contrato acaba de ser assinado com o Paquistão. “Eles estão se preparando para uma intensificação das sanções econômicas. Rumam em direção ao epicentro geoeconomicamente novo no Oriente, que orbita ao redor da China, por terem ali imenso espaço onde é possível realizar um conjunto de substituições de oferta dos recursos naturais antes entregues à Europa e ao restante do Ocidente, agora redirecionados para o Oriente Médio, a Ásia e uma parte da África”, ressalta Nozaki. Com a África do Sul, a Rússia firmou um acordo que prevê a construção de oito reatores para as usinas de energia nuclear do país. É o primeiro projeto de alta tecnologia da Rússia desenvolvido no continente africano, entre as estatais Rosatom, russa, e Eskom, sul-africana, com um investimento de 40 bilhões de dólares. Além disso, o Kremlin assinou um acordo estratégico com a Arábia Saudita para a criação de dois fundos de investimento no domínio energético e de tecnologia, com 1 bilhão de dólares cada.
Fontes: Base Cartográfica: Eurotast, 2020.
Votação: ONU, 2/3/2022.
Sistema de referência: WGS 84.
Elaboração: Ineep.
De eficácia relativa para encurralar a Rússia, as duras sanções econômicas e financeiras desencadeadas pelo Ocidente mostram, entretanto, efeitos colaterais adversos para os próprios participantes do bloqueio. Bloqueios à importação de gás e carvão podem afetar muito mais os compradores europeus do que o país exportador. De acordo com dados da BP, em 2020, a Rússia respondia por quase metade das importações de gás natural e carvão para a Europa e por um quarto das compras de petróleo. Segundo o economista Rüdiger Bachmann, da Universidade de Bonn, a substituição, na Alemanha, do gás usado para a produção de eletricidade por carvão ou energia nuclear bem como o reabastecimento das instalações de armazenamento durante o verão só podem reduzir o déficit para cerca de 30% do consumo de gás ou 8% do consumo de energia nos próximos 12 meses. A Europa corre o risco de ficar exposta também a um déficit crônico de fornecimento de diesel, que pode levar ao racionamento desse combustível, alertaram executivos das maiores traders independentes de petróleo do mundo na terça-feira 22 na Cúpula Global de Commodities do Financial Times.
Leão e Nozaki afirmam, no artigo mencionado, que por conta de uma convergência energética criada com outros grandes players do setor e de uma aliança militar realizada com vários países em desenvolvimento e devido também à parceria estratégica com a China, esse talvez seja o momento de maior fortalecimento da Rússia no cenário internacional desde as guerras da Chechênia, em 1999, e da Geórgia, em 2008. Quando das tensões na Criméia, acrescenta Nozaki, houve uma pressão muito maior, inclusive para atrasar as obras do NordStream 2, o que seria altamente prejudicial à Rússia. “As sanções financeiras dos EUA contra a Rússia não vão funcionar”, dispara Chen Jing, vice-presidente da Sociedade para a Ciência, Tecnologia e Tendências Estratégicas, de Pequim, na publicação Vozes da China. O bloqueio, diz, causará um golpe na economia russa no curto prazo, mas, no longo, terá efeito contrário, pois conduzirá à formação de um sólido triângulo de cooperação regional entre a China, a Rússia e o Irã na Eurásia.
“Os Estados Unidos e o G-7 alimentam o sonho de que vão estrangular econômica e financeiramente um país do tamanho da Rússia, mas é utópico pretender o isolamento da segunda maior potência militar do mundo, que tem o maior território, o segundo arsenal nuclear, constitui a maior potência energética e é hoje uma das maiores produtoras de grãos e alimentos”, sublinha José Luis Fiori, professor titular de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Outras saídas”
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