Economia

“Renda básica divide e une liberais e desenvolvimentistas”

Os liberais e o governo querem uma renda básica enquanto os desenvolvimentistas visam adicioná-la aos benefícios sociais existentes

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A criação, na Câmara dos Deputados, da Frente Parlamentar Suprapartidária em Defesa da Renda Mínima, com todos os partidos exceto o Novo, é um estímulo para uma maior convergência entre economistas liberais e desenvolvimentistas em torno da proposta, acredita o economista Guilherme Mello, professor de economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp. A importância do movimento aumenta com o término, em setembro, do auxílio emergencial de 600 reais mensais e sua substituição, pretendida pelo ministro da Economia Paulo Guedes, pelo chamado Renda Brasil, projeto de renda mínima mensal que prevê a eliminação do Bolsa Família e vários outros programas sociais, com enormes perdas para os beneficiários. Os desenvolvimentistas, diz Mello, veem a renda mínima ou básica como um acréscimo às políticas sociais existentes, que devem ser mantidas, enquanto os liberais a defendem como substituto do estado de bem estar social.

CartaCapital: Como vê a relação entre a constituição da frente parlamentar pela renda básica e a questão das convergências e divergências entre economistas liberais e desenvolvimentistas sobre a renda mínima?

Guilheme Mello: Uma frente abrangente talvez dê um impulso à proposta. O tema renda básica, apesar de não ter o mesmo ponto de partida teórico entre desenvolvimentistas e liberais, ele é capaz de unificar. Existem desenvolvimentistas e liberais que querem o auxílio por motivos diferentes, e que receiam o auxílio por motivos diferentes. Mas me parece que neste momento político, o querer está predominando sobre o recear.


CC: Qual é a diferença fundamental?

GM: A formulação desenvolvimentista vê na renda básica um complemento ao estado de bem estar social, enquanto a liberal a vê como uma substituição dele. Isso quer dizer que uma frente parlamentar talvez não concorde quanto ao formato do programa, mas é capaz de pautar a ideia.


CC: A possível convergência entre desenvolvimentistas e liberais em torno da renda básica pode frutificar em outros movimentos semelhantes?

GM: Eu tenho esperança que o mesmo ocorra com a discussão tributária.  Não há consenso sobre os detalhes de como deveria ser,  mas se você conversar mesmo com economistas liberais, eles concordam que o tema da progressividade tem que aparecer, não necessariamente no mesmo lugar. Alguns acham que tem de ser mais imposto sobre patrimônio, outros mais imposto sobre renda, mas talvez o fato de haver um consenso de que ele tem que aparecer  faça com que ele surgir agora no debate tributário que vai avançar no Congresso. Portanto é o mesmo caso, são motivos diferentes, medos diferentes, preocupações diferentes, mas ambos querendo caminhar na direção de uma proposta, no caso que a gente está discutindo agora, de renda básica. Tem que ver a composição, mas eu acho que pode ser a consolidação disso que eu falei.


CC: Qual é a questão mais importante envolvida nessa disputa de ideias?

GM: A disputa de fundo é, de um lado, quanto ao papel do Estado, o que ele deve fazer, se deve distribuir renda, garantir benefícios sociais ou a seguridade social,  serviços públicos. Ele deve regular o mercado de trabalho, ou, simplesmente, evitar a pobreza?  Essa é a grande questão.


CC: Entendi.

GM: Para um liberal mais radical, a função do Estado é evitar que as pessoas caiam na pobreza e regular algumas atividades, monopólio, e o resto, é cada um por si, é uma disputa de méritos. Se você não é pobre, se não está na pobreza, então teve condições mais ou menos similares às dos outros e a partir daí, é por mérito. O economista Milton Friedman defendia uma ideia de renda básica exatamente para isso. Não é para fortalecer o Estado, mas para substituí-lo. É a ideia de você tirar o estado de bem estar social e colocar no lugar uma renda básica.


CC: Há outras diferenças?

GM: Nós da esquerda não  queremos essa renda como eles querem porque tememos que eles tirem o estado de bem estar social. E os liberais têm medo que a renda básica complemente o estado de bem estar social.


CC: Parece que o  debate sobre renda básica revela tanto o que aproxima quanto aquilo que separa as visões de “liberais” e “desenvolvimentistas” no Brasil.

GM: Ambos são favoráveis e contrários a algum projeto de renda básica, mas por motivos diferentes. A renda básica pode ser pensada como uma rede de segurança contra a pobreza. Recentemente, está sendo discutido seu papel como substituto do emprego, que está desaparecendo devido às novas tecnologias. Seu custo é alto e, sendo universal, seu impacto distributivo é menor do que políticas focalizadas (as políticas universalistas direcionam os recursos públicos a todos os cidadãos , enquanto as focalizadas destinam  estes recursos para os mais pobres por meio de instrumentos que os selecionem como beneficiários diretos).


CC: Qual é o espaço do Bolsa Família nessa debate?

GM: No Brasil, optou-se por um programa de distribuição de renda contra a pobreza de desenho focalizado, o Bolsa família, um dos maiores e mais premiados programas de combate à pobreza do mundo, fundamental para tirar o Brasil do mapa da fome, praticamente acabar com a pobreza extrema e fomentar a economia local. Mas diante das mudanças no mundo pós-pandemia, ele poderá se mostrar insuficiente. Sua linha de pobreza é baixa e milhões de pessoas voltarão a essa condição, mesmo que não extrema, devido a crise da covid-19. Mais que isso, o que virá depois será um mundo com cada vez menos empregos tradicionais, com renda mais concentrada e desenvolvimento e empregos mais centralizados nas grandes potências. Nesse sentido, retomou-se no Brasil o debate sobre propostas de renda básica, algumas ainda focalizadas, outras mais universais.


CC: Como vê o Renda Brasil do ministro Paulo Guedes?

GM: No Brasil, os liberais querem unificar programas de transferência de renda que possuem diferentes objetivos, como o abono salarial, o seguro defeso e até o Benefício de Prestação Continuada, para ampliar e/ou universalizar um programa com o único objetivo de evitar a pobreza.  Já os “desenvolvimentistas” defendem que é impossível unificar programas com objetivos diferentes em um único benefício. Isso tiraria renda dos “pobres” (trabalhadores que recebem salário mínimo, idosos que recebem o BPC) para distribuir muito pouco para os muito pobres (ou para os ricos, se for universal).


CC: A criação de uma renda básica requer uma reforma tributária?

GM: Tem crescido a concordância quanto a que, seja da forma que for, uma renda básica universal teria que ser acompanhada de uma reforma tributária com viés distributivo. Parte do custo do programa deveria ser bancado com impostos dos mais ricos. Aqui há acordo!


CC: Qual é o problema?

GM: O medo supera os pontos em comum. Os liberais têm medo de que a renda básica universal se some aos atuais benefícios e gere pressão fiscal. Os desenvolvimentistas têm medo de que a renda básica universal substitua os atuais benefícios e destrua o que sobrou da proteção social e trabalhista.


CC: Quem tem razão?

GM: Provavelmente ambos . Uma renda básica ampliada seria bem vinda, mas universalizar em um país de renda polarizada como o Brasil faz pouco sentido. O custo é alto e o valor do benefício seria baixo. Não melhora a vida do rico nem resolve a vida do pobre. Unificar programas que tem relação com combate a pobreza é tirar renda de trabalhadores pobres.

 

CC: O Bolsa Família unificou programas quando foi criado.

GM: Mas todos os beneficiários saíram ao final com o valor igual ou maior do que recebiam antes. Além disso, houve a inclusão de vários novos beneficiários.


CC: Vamos voltar à questão do custo e das fontes de financiamento.

GM: O aumento da receita é uma parte da história, mas é preciso repensar gastos ineficazes, em particular desonerações e algumas carreiras públicas que recebem acima do teto.


CC: Como encaminhar essas questões?

GM: O debate sobre renda básica universal é bom e oportuno. Há pontos de contato, mas o medo acerca da direção que a mudança irá tomar evita um consenso entre liberais e desenvolvimentistas. A saída é pela democracia: o Congresso deve construir um projeto que busque dar conta das diferenças.


CC: De que modo essa questão está sendo debatida no resto do mundo?

GM: No debate internacional, recentemente a ideia de renda básica voltou por outro motivo, não é por essa pegada liberal não. Ela voltou porque os empregos estão desaparecendo.


CC: A situação  mudou completamente.

GM: Está de cabeça para baixo. E agora tem a tecnologia 5G, a revolução 4.0. Assisti a uma reportagem esses dias de uma fábrica do Playstation 4, da Sony. É o estado da arte da manufatura avançada: 32 robôs, fornecidos pela Mitsubishi, levam apenas 30 segundos para produzi-lo. Apenas quatro trabalhadores: dois para inserir as placas-mãe no início e dois para embalar o aparelho.


CC: Como deve ficar o mercado de trabalho?

GM: Haverá uma escassez estrutural de trabalho, inclusive na agricultura. Hoje já se alimenta o mundo inteiro com apenas 4% dos trabalhadores alocados no setor agrícola.  Com a mecanização do campo, não há mais necessidade do trabalhador, no limite. Hoje, numa fazenda de soja, há só avião e máquina, não tem gente. Isso vai acontecer na indústria também. Já está acontecendo.


CC: Sobra o setor de serviços.

GM: Só que o setor de serviços não consegue dar conta da necessidade de geração de emprego. Essa ideia de que vai criar mais empregos em serviços, serviços sofisticados, mais programadores, isso é mentira, inclusive porque a inteligência artificial vai substituir muitos dos trabalhos hoje realizados pelo programador. Mas ainda que isso fosse verdade, é preciso lembrar do seguinte: o domínio tecnológico é profundamente concentrado. É diferente do domínio sobre a máquina de tear, que qualquer país tem. Já o design de um software altamente sofisticado não é para qualquer país. É um segmento muito concentrado.  Os países e o mundo globalizado já perceberam  que vai faltar emprego. Portanto  vamos criar uma renda básica universal que garanta um mínimo de cidadania, independente de a pessoa estar trabalhando ou não. É uma garantia de cidadania, uma visão de cidadania que complementa o estado de bem estar.

CC: E como é que se financiaria isso?

GM: Existe uma ampla discussão sobre tributação de ganhos financeiros, de empresas tecnológicas, de plataformas digitais e redes sociais. Financia-se com tributação sobre capital financeiro, evasão fiscal, plataformas tecnológicas. Esse é o desenho que está sendo discutido lá fora.


CC: Sem falar no dinheiro dos paraísos fiscais.

GM: O economista Joseph Stiglitz lançou um documento sobre isso, subscrito por um grupo, com propostas para evitar evasão fiscal.  Há um debate sobre como  financiar a cidadania, e na Europa em particular, a respeito da  redução de jornada. Como haverá menos emprego, é preciso reduzir a duração da jornada, mas mesmo isso não resolve o problema, daí a alternativa da renda da cidadania.


CC: Um assunto relacionado ao da renda básica é o salário mínimo. Há quem diga que quem recebe salário mínimo é privilegiado.

GM: Como no Brasil a renda média é muito baixa, alguns entendem que quem ganha um salário mínimo é privilegiado, porque ele está no quarto decil de renda, então estaria bem, mas a gente sabe que não está bem. Como a renda média é muito baixa e há uma polarização muito grande da renda no Brasil, não faz o menor sentido você dizer que quem ganha um salário mínimo é privilegiado.


CC: O governo quer retirar a proteção ao trabalho.

GM: O governo falou em, junto à carteira verde-amarela, acabar com o FGTS. Querem tirar a proteção ao trabalho, o financiamento e os gastos da seguridade social e pegar esses recursos e destinar a uma renda que na verdade, juntando tudo dá um pouco mais que o Bolsa Família. Como eu disse, é uma ideia de substituir a seguridade social e a proteção ao trabalho  por uma micro renda universal que, se for universal, nem distributiva é, porque o dono da Havan vai ganhar e eu também.

CC: A discussão está mal colocada?

GM: Eu acho que a discussão está mal colocada, nesse sentido. Há um acordo quanto a que seria bom existir uma espécie de, eu prefiro dizer, renda básica para os pobres, não universal, de modo que quem é pobre, terá uma renda que vai tirá-lo da pobreza. Isso eu acho que seria bom ter.

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