Economia

Racionamento da razão

A gravidade do problema energético já produzia sintomas há anos sem sequer despertar curiosidade

O serviço de suprimento de eletricidade envolve uma tecnologia do início do século passado
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O fantasma da volta do que já vivemos em 2001 tem provocado um intenso debate entre especialistas e uma curiosidade um tanto mórbida da imprensa sobre a probabilidade dessa ocorrência. Sem desqualificar e nem discordar das estimativas, entendo que há um erro de foco. Na realidade, a gravidade do problema já produzia sintomas há anos sem sequer despertar curiosidade.

O serviço de suprimento de eletricidade envolve uma tecnologia do início do século passado. Muito embora haja um crescente uso de automação e controle, os princípios físicos continuam os mesmos. Na realidade, com a exceção da energia fotovoltaica, toda a eletricidade é produzida transformando energia cinética em corrente elétrica. Portanto, tudo se resume a alguma máquina que “gira” e que, pelas leis do eletromagnetismo, faz nossos aparelhos “girarem” também.

Apesar da tecnologia conhecida, o nosso setor tornou-se um mistério após as reformas mercantis de 1995 mantidas na essência pelo governo Lula e Dilma. Sintomas adversos, que num país sério estancariam qualquer política, aqui não causam nem espanto.

A tarifa média brasileira está 80% mais cara do que a praticada em 1995, já descontada a inflação. Não há diagnóstico sobre os motivos desse encarecimento e fica tudo por isso mesmo.

O nosso mercado livre, que congrega quase 30% da carga, sempre mostrou indícios doentios. A diferença entre preços máximo e mínimo verificados ultrapassa 6.000%. Ou seja, nesse mercado é possível liquidar o MWh a 12 reais ou a 822 reais. Essa situação não é encontrada em nenhum outro mercado do planeta. O que essa constatação causa? Nada.

A medida provisória 579 das tarifas revogou contratos de concessão anteriores e rasgou as evidências numéricas de balanços das empresas. A interferência fixou valores irrisórios para as usinas estatais numa vã tentativa de reduzir a tarifa. Com R$ 7/MWh, valor que não chega a 30% de referências internacionais, o efeito final foi pífio e ainda coloca em risco o próprio sistema. O que essa informação é capaz de fazer? Nada.

Quando desinformação e complacência chegam a esse ponto, não há como esperar mudanças. Fundamentalistas de mercado a qualquer preço do governo associadas a interesses setoriais não vão reconhecer a incompatibilidade física da modelagem com sotaque inglês adotada no Brasil.

Nesse momento, todos se sentem vitimados pelos preços praticados no mercado. Apesar de ser tão bizarro quanto os R$ 822/MWh atuais, os R$12/MWh de dois anos atrás foram aproveitados sem alarde. Afinal, quem vai querer desmontar um negócio onde, na maioria do tempo, a energia fica quase de graça e nos períodos de desequilíbrio basta reclamar?

O verdadeiro racionamento brasileiro é o da razão.

Roberto Pereira D’Araujo é diretor do Instituto de Desenvolvimento do Setor Energético

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