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Quem tem razão?

Uma análise das divergências entre Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann sobre os rumos da política econômica

Debate. Haddad reclama da falta de apoio do partido. Hoffmann fala em “austericídio” e diz que cabe à legenda defender um projeto progressista – Imagem: Geraldo Magela/Ag. Senado e Diogo Zacarias/MF
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O debate entre o ministro d­a Fazenda, Fernando ­Haddad, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, sobre a meta de déficit fiscal em 2024 precisa nos levar a outubro de 2015, quando o MDB apresentou o programa do golpe de Michel Temer, o “Ponte para o Futuro”. O programa propunha: 1. Radicalizar o ajuste fiscal contra o gasto social para reduzir o “Custo Brasil” (via desoneração de empresas e ricos). 2. Atrair investimento externo com privatizações, reforma trabalhista e tratados internacionais que rebaixassem tarifas alfandegárias, salários, encargos de demissão, diminuindo o Custo Brasil com o sacrifício de trabalhadores e consumidores.

Em visita aos Estados Unidos em 2016, Temer afirmou que o “Ponte para o Futuro” foi proposto a Dilma Rousseff como condição para evitar o impeachment e, como ela não aceitou, era ele o presidente. Para confirmar a confissão, a ofensiva neoliberal emplacou a desnacionalização do pré-sal, o teto de gastos e a reforma trabalhista. Sob Jair Bolsonaro, a reforma da Previdência, o Marco do Sanea­mento, a independência do Banco Central e a privatização da Eletrobras.

O “Ponte para o Futuro” não trouxe o Pibão. Como demonstrado na privatização das refinarias, a contração da regulação ou oferta pública aumenta o Custo País. Já a desaceleração do gasto público e do consumo dos trabalhadores desestimula o investimento total. O teto de gastos era central para o projeto neoliberal. O desfinanciamento de bens e serviços públicos cria uma demanda reprimida por educação, saúde, segurança, transporte e aposentadoria que abre espaços para os investidores.

Se não trouxe o Pibão, o “Ponte para o Futuro” nos conduziu ao neofascismo. O baixo crescimento, a redução salarial e a oposição à austeridade levariam à reforma do teto de gastos, exceto se uma ditadura neoliberal vingasse, mas a pandemia de Covid-19 acelerou a crise. A contragosto de Bolsonaro e Paulo Guedes, a pandemia mostrou a falácia do lema “o dinheiro acabou” em face da urgência de transferências monetárias para desempregados, recolocando a proteção social acima da austeridade fiscal.

Em 2022, a lógica da eleição forçou ­Bolsonaro a prometer auxílio de 600 ­reais sem previsão no orçamento de 2023, que ditava contração de 150 bilhões de reais. Isso legitimou a crítica de Lula e do PT ao teto de gastos, levando à PEC da Transição. Ao contrário da austeridade, a PEC acabou com o teto e permitiu o crescimento do gasto federal em 9% no ano passado, sustentando o PIB por meio do gasto social e do investimento público, de novo frustrando o pessimismo do mercado sobre o crescimento e a relação dívida/PIB.

O atual regime fiscal é insustentável no médio prazo

A raiz do conflito entre Haddad e o PT está no fato de a proposta da equipe econômica durante a transição não eliminar o teto de gastos, mas autorizar o pagamento do Bolsa Família fora do limite imposto. Assim, o piso de gastos em educação e saúde não seria retomado e os limites para investimento continuariam. A desconfiança do PT aumentou quando a equipe econômica, depois da aprovação do Regime Fiscal Sustentável (RFS), ventilou a possibilidade de uma lei para revogar o piso de educação e saúde.

O RFS confina a elevação das despesas a um novo teto igual a 70% do aumento das receitas até o limite de 2,5% ao ano. Se educação, saúde e emendas parlamentares crescerem à taxa de 100% das receitas, enquanto o salário mínimo se vincula à variação do PIB (elevando o gasto previdenciário), as demais despesas deverão ser contraídas.

Isso já ocorrerá em 2024. O orçamento permite crescimento de 1,7% do gasto, caso metas irrealistas de arrecadação sejam cumpridas. Contudo, as demais despesas, exceto educação, saúde, previdência e emendas parlamentares, deverão ser cortadas em termos reais. Isso é insustentável no médio prazo: ou os limites do novo teto são alargados ou novas reformas constitucionais cortarão direitos à educação, saúde e previdência públicas.

Em vez de admitir a contradição, ­Haddad repetiu o mantra neoliberal de que a austeridade fiscal é necessária para o BC reduzir juros e para o investimento privado liderar a expansão do PIB, uma exigência do RFS. Se a carga tributária (arrecadação/PIB) é estável no médio prazo, caso o gasto público cresça menos que as receitas, também cresce menos que o PIB. Isso tende a desacelerar a expansão do PIB, da arrecadação e, dado o RFS, ainda mais do gasto público. Ademais, Haddad determinou metas de superávit primário a partir de 2024 que acentuam o que Gleisi Hoffmann chamou de austericídio. A meta de déficit zero em 2024 é só o começo, e já determina que o aumento provável do gasto público seja de 0,6%, ou ainda menos. Como as metas de arrecadação são irrealistas, o déficit zero exige contingenciar o orçamento sem garantia de que, se o gasto voltar a ser autorizado, ele possa ser executado.

Se o teto de gastos de 2024 for um crescimento de 0,6%, basta que cerca de 12 bilhões de reais não sejam executados para termos contração do gasto público em 2024. A redução brusca diante do crescimento de 9% em 2023 pode jogar gasolina no fogo da desaceleração do PIB em ano eleitoral, com consequências econômicas e políticas até o fim do governo.

O risco assumido por Haddad é alto, com o argumento de que, sem o compromisso com o déficit zero, a pressão sobre o Congresso para elevar a arrecadação diminui. Há três problemas na aposta.

O primeiro é que talvez haja outro cálculo, mais maquiavélico, entre alguns parlamentares: descumprir metas fiscais é ruim para o governo, mas eleva o poder do Congresso perante o Executivo quando a política fiscal é matéria criminal.

O segundo é que o PT parece desconfiar que Haddad, seja por convicção, seja porque quer pilotar em 2030 uma frente ampla majoritariamente de centro-direita, não adere a contragosto ao austericídio de um Congresso neoliberal. A confiança será testada caso se insista em revogar o piso da saúde e da educação, o que aumentaria a resistência no PT ao nome do ministro como futura liderança.

O terceiro problema é que, caso a aposta de Haddad fracasse, é pouco provável que Lula aceite morrer abraçado com ele. •


*Professor do IE-Unicamp, onde coordena o Cecon.

Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.

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