Economia

“Quando o trabalhador paga o dobro, reduz o salário pela metade”

O economista avalia consequências do rentismo e do poder das megacorporações. Ao trabalhador, resta ser explorado por juros abusivos

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O rentismo não apenas enriquece o seleto grupo que o acessa, mas empobrece o trabalhador, que vê seu dinheiro escoar na forma de juros abusivos. Esse é o panorama que o economista Ladislau Dowbor e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) descreve em seu novo livro A Era do Capital Improdutivo (Outras Palavras & Autonomia Literária).

Os 28 gigantes do mundo financeiro controlam 1,8 trilhão de dólares, mais que o PIB do Brasil. E como seria diferente? Enquanto o investimento produtivo rende 2%, as aplicações financeiras geram pelo menos 7% de retorno. A consequência é concentração de poder, de renda e vulnerabilidade da democracia. “Existe uma finança mundial, mas não um governo mundial”, afirma Dowbor, em entrevista a CartaCapital.

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Segundo Dowbor, se olharmos a conta do trabalhador, ele é explorado pela taxa de juros, pois quando paga o dobro pelo que compra, é como se dividisse seu salário pela metade. “Reduzir juros é fechar a principal torneira por onde vaza o gasto improdutivo”, afirma o economista.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

CartaCapital: Como podemos definir a era do capital improdutivo, título do seu livro?

Ladislau Dowbor: O primeiro ponto é que é média de rentabilidade dos papéis no plano internacional é de 7% ao ano. Isso é aplicação financeira, não é investimento. O banco chama de investimento, mas não é. Quando se aplica em papeis não se tem uma casa a mais no país, um sapato a mais no país. Já no investimento produtivo o retorno é da ordem de 2% ou 2,5% ao ano. Então o dinheiro flui para onde rende mais. E rendendo mais em papeis, o investimento produtivo tem seus recursos desviados para o financeiro.

Se olharmos apenas os fundos de pensão, são cerca de 730 bilhões de reais. Em muitos países, esses fundos são obrigados a investir efetivamente em atividades produtivas, pois isso gera futuras riquezas que poderão cobrir as necessidades dos futuros aposentados. Já no Brasil, eles são autorizados a aplicar até 100% em títulos públicos. E isso é até divertido, porque é do nosso bolso, via impostos, que sai a pensão complementar privada.

O primeiro grande argumento, que deu lugar à popularidade do livro do Piketty (Thomas Piketty, autor de O capital no Século XXI). Ele demonstrou claramente isso: há um capitalismo improdutivo e quando você obtém 7% em papéis contra 2% na produção, na realidade se gera um sistema financeiro extrativo, que extrai riquezas. O Instituto Roosevelt fala em produtividade líquida negativa do sistema financeiro. Não há financiamento da produção, pelo contrário, ele extrai.

CC: E qual o papel dos paraísos fiscais nessa estrutura?

LD: O sistema de aplicação funciona no plano internacional e todo o sistema que administra esses recursos financeiros têm sólidas estruturas em paraísos fiscais. Como o dinheiro não é mais uma estrutura física, em grande parte isso escapa do controle dos bancos centrais.

Basicamente se tem um sistema financeiro que gira no planeta, enquanto os sistemas de controle são nacionais. São cerca de 200 bancos centrais e o Banco de Compensações Internacionais dá conselhos, mas não apita nada. Tem-se um descontrole dos recursos que circulam pelo mundo.

O PIB mundial de 2012 era 73 trilhões de dólares e o estoque de recursos financeiros em paraísos fiscais girava entre 21 e 32 trilhões de dólares segundo o TJN (Tax Justice Network). A revista The Economist fala em 20 trilhões de dólares. De qualquer maneira, constata-se que esses recursos financeiros não só deixam de ser reinvestidos, porque são reaplicados em outros papeis, como sequer pagam impostos.

CC: Quais as consequências desse esvaziamento do capital produtivo em nome do capital financeiro?

LD: De algum lugar vem os recursos para essa apropriação financeira. E de onde eles vêm? No caso do Brasil, da taxa de juros sobre as famílias. Todo mundo tem um cartão de crédito no bolso. Esse cartãozinho é uma ligação eletrônica com uma instituição financeira. É como ter um pipeta no bolso que permite a drenagem.

Quando se entra no crediário de qualquer uma dessas grandes lojas, são 105% de juros ao ano. Isso é absolutamente absurdo, porque eles não produzem, só recebem e repassam. Não são mais instituições de prestação de serviços comerciais, são essencialmente intermediários financeiros.

As famílias passaram a ter mais recursos na história recente – seja pelos programas de transferência de renda, a valorização do salário mínimo ou o crescimento do emprego – e rapidamente os bancos aprenderam a chupar esses recursos.

Primeiro as redes comerciais, que aumentaram os juros dos crediários, depois os bancos. Quando as pessoas não conseguem pagar o crediário, pedem empréstimo, numa média de 156% ao ano – lembrando que na Europa é 3,6%.

Então se extrai através do crediário, se extrai através dos juros bancários. Mesmo que se consiga entrar no crédito consignado, são 26%. Esse tipo de juros na Europa ou nos estados Unidos está em torno de 3%. Se a pessoa se enrosca e entra no cheque especial, acima de 300%. Se entra no rotativo do cartão, são 480%. Economistas estrangeiros que me visitam questionam: como é que o povo aceita? Mas em escola nenhuma há uma aula sequer sobre como funciona a moeda.

Há um resultado prático: hoje temos 61 milhões de adultos negativados. Num país que tem 206 milhões de habitantes, 40% dos adultos não consegue pagar as prestações, os juros, sobre o que já compraram. E então se paralisa o principal motor da economia, que é o consumo das famílias.

CC: A partir do momento em que os recursos das famílias e das empresas são desviados para o sistema financeiro, como é possível dinamizar a economia sem investimento produtivo?

LD: Isso não existe. A forma de sair disso é a mais clássica, a que funciona em qualquer parte do mundo, está comprovada e a gente sabe como fazer: basicamente tem que mobilizar o principal motor que é o consumo das famílias. E isso significa reduzir os juros. Reduzir os juros é fechar a principal torneira por onde vaza o gasto improdutivo das pessoas. Quando as famílias consomem, as empresas voltam a empregar. E aí se aumenta ainda mais a capacidade de compra.

CC: Como políticas públicas podem efetivamente ajudar a economia a girar?

LD: O bem-estar das famílias depende do salário direto, mas depende também do que chamamos de salário indireto. O norte-americano tem um salário mais alto do que o canadense, mas o canadense tem um salário indireto muito amplo. Eles têm a creche, a escola de graça, a saúde de graça… Na realidade, esse tipo de salário gera um equilíbrio social muito maior, porque o acesso é público, universal e gratuito.

É preciso articular famílias consumindo mais – mas sem gastar com planos de saúde e coisas do gênero – à atividade empresarial e à política de estado – que em vez de cortar gastos, aumente o salário indireto das famílias. Esse é o tripé que coloca o motor em marcha. Isso é clássico.

CC: Mas com retornos tão atraentes para o capital financeiro, é possível interromper a dinâmica econômica que temos hoje?

LD: No quadro político existente – com o Congresso que foi eleito por corporações e um presidente com 5% de apoio da população – criou-se uma estrutura que inviabiliza justamente montar o que é necessário.

Por exemplo, o que o Roosevelt (Franklin Roosevelt, presidente dos EUA de 1933 a 1945) fez. Porque em 1929 era mais ou menos isso, mas a população votou no Roosevelt, que colocou impostos de 90% para as grandes empresas, entre outras medidas do New Deal.

E se olharmos o que está sendo discutido internacionalmente, é se pensar um imposto razoável sobre o capital improdutivo. Se o capital improdutivo é tributado, o dono de uma fortuna dessas em vez de apenas assistir o dinheiro crescer sem precisar produzir nada, verá que não é bem assim.

CC: Então uma ferramenta do estado para tentar esse equilíbrio seria uma cobrança mais assertiva de impostos?

LD: Mas não tem nem dúvida. A reforma tributária é vital nisso. É uma piada quando não só o rentismo rende o que rende, mas os dividendos sequer são tributados.

CC: Uma questão bastante central no livro é a concentração de poder nas megacorporações internacionais, que altera a arquitetura global de poder. Como a democracia se fragiliza diante do poder hegemônico do capital financeiro?

LD: Existe uma finança mundial, mas não um governo mundial. Em muitos países se estuda a “captura do poder”, que se dá tradicionalmente através de lobby. Mas no Brasil ele acontece pelo financiamento das campanhas eleitorais pelas empresas, que podem comprar seus políticos.

E isso é engraçado, porque quando se paga um deputado para votar de uma determinada maneira chama corrupção, mas quando se compra por quatro anos, por atacado, é financiamento de campanha. Então temos algo mais sofisticado, que valeu de 1997 a 2015, em que as empresas podiam financiar diretamente seus deputados. 

CC: E como todo esse contexto pesa sobre a concentração de renda e o aumento da desigualdade?

LD: Três quartos da população gasta seu salário até o fim do mês. Então quem é que paga as aplicações, quem faz render? O melhor modo das pessoas entenderem como isso vira uma bola de neve: se um bilionário aplica 1 bilhão de dólares a 5% ao ano, o que é bem modesto, ele aumentaria a fortuna, ao dia, em 137 mil dólares.

Do ponto de vista do trabalhador, é muito interessante. Os sindicatos ainda pensam que precisam brigar unicamente pelo salário, pois imaginam que é aí que está a exploração. Se olharmos a conta do trabalhador, ele está sendo muito mais explorado pelo capital financeiro, pela taxa de juros: ele paga o dobro ou mais pelos produtos que compra. Quando ele tem que pagar o dobro pelo que compra, é como se dividisse o salário pelo metade. Os pobres não só pagam mais imposto, como pagam o dobro pelo que consomem porque não podem pagar à vista. Não tem como uma economia funcionar com um sistema desses.

CC: Ainda nem saímos da crise de 2008, mas essa disfuncionalidade deixa o mundo sempre  vulnerável a novas crises. Como a concentração de renda entra nesta equação?

LD: Existe principalmente uma vulnerabilidade política. Quem faz aplicações financeiras são os ricos, que se tornam mais ricos. Essa modalidade de ganhar dinheiro não está na mão dos pobres, que precisam trabalhar e produzir para ganhar os seus salários. Então aumenta a distância política.

Isso gera uma situação explosiva, porque os pobres, em qualquer parte do mundo, não são mais aqueles coitadinhos que dizem “sim, senhor” para tudo. Estão conscientes de que podem parir numa clínica decente, que seu moleque pode estudar numa escola decente…

E aí o Trump diz que vai construir um muro para se proteger dos mexicanos, Israel constrói um muro para se proteger dos palestinos, os europeus colocam arame farpado no Mediterrâneo, mas não vai dar para fazer um condomínio de riquinhos no Planeta. A desigualdade planetária se tornou insustentável. Em termos econômicos, é insustentável porque se está cortando a capacidade de consumo das famílias.

CC: E se conhecemos a fórmula, quais são os interesses que impedem que ela seja aplicada?

LD: Os grupos financeiros estão ganhando tanto dinheiro, e em torno deles estão grandes empresas de intermediação desse dinheiro, um conjunto de mecanismos que se transformou em grandes burocracias internacionais.

Há os 28 gigantes e o capital médio com o qual trabalha cada um deles é 1,8 trilhão de dólares. O PIB do Brasil é 1,7 trilhão. Então hoje é o rabo que abana o cachorro. O equilíbrio mudou e o drama é esse: o espaço para um país mudar o seu sistema.

E os gigantes, a partir da crise de 2008, passaram a se estruturar de maneira organizada. Não se tem mais mercado, no sentido de concorrência, isso é passado. A melhor definição dessa dinâmica foi feita pelo sociólogo alemão Wolfgang Streeck. Ele mostra de maneira prática como seria se os governos servissem o povo e como eles servem efetivamente ao poder financeiro.

E ele tem uma frase muito poderosa: não é o fim do capitalismo, mas é o fim do capitalismo democrático. Porque quando o capitalismo era formado por milhões de pequenas empresas era necessário um governo que pusesse ordem, que regulasse essas atividades. Hoje são eles, esses gigantes, que fazem a regulação. Isso desloca em profundidade o conceito de democracia.

CC: Com isso não há espaço ou autonomia para o campo político colocar medidas que alterem esse quadro?

LD: O problema do Brasil não é só um problema do Brasil. É o problema dos governos de esquerda que acabam aplicando uma política de direita porque têm que satisfazer o sistema financeiro.

Em termos de compreensão concreta da crise brasileira atual, não é uma crise herdada da ex-presidente Dilma Rousseff que a direita está tentando consertar, mas sim uma crise gerada pelo sistema financeiro que se tenta atribuir aos governos anteriores. O que é uma farsa.

CC: E existe algum caminho de saída dessa dominação?

LD: Enquanto as pessoas não entenderem como estão sendo depenadas não haverá avanço. Todo esse raciocínio deveria ter muito mais visibilidade. Como os mecanismos financeiro são complicados, isso gera uma relação de forças fragilizada.

Por exemplo: quando se tem a exploração salarial que atinge um conjunto de trabalhadores de uma empresa, eles fazem greve, brigam com o patrão porque sabem quem é o patrão. Mas nesse sistema em que você é drenado através da tarja magnética que está no seu bolso – não é mais-valia salarial e sim mais-valia financeira – o que se faz? Uma manifestação em frente da agência bancária? Não há a quem endereçar.

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