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Qual cinto apertar

Mais do que cortes indiscriminados de gastos, alterações na política fiscal devem priorizar eficiência e equidade

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Imagem: iStockphoto
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Segmentos influentes da sociedade, de comentaristas de mercado à mídia ­mainstream, insistem que o Brasil está “quebrado” e que a única saída é apertar o cinto e cortar gastos públicos, priorizando o controle do déficit a qualquer custo. Como na clássica fábula A Roupa Nova do Imperador, muitos fingem ver a “roupa”, que não existe, para evitar o constrangimento de parecer desinformados.

Esse discurso se baseia na tese da dominância fiscal. O descontrole dos gastos públicos forçaria o Banco Central a elevar os juros para conter efeitos inflacionários, freando o consumo e o investimento, e impactando negativamente no crescimento. Em outras palavras, atribui-se ao gasto público o papel de vilão, tornando o ajuste fiscal uma necessidade inevitável e perpétua.

É uma tese extremamente questionável. Se olharmos para as dez maiores economias do mundo, o nível de endividamento público do Brasil não destoa dos demais. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional para 2024, o nível de dívida pública do Brasil (87%) é semelhante aos níveis da China (88%) e da Índia (81%), países de menor PIB per capita do grupo, e inferior àquelas dos demais países – EUA (121%), Japão (237%), Reino Unido (101%), França (113%), Itália (135%) e Canadá (111%) –, com exceção da Alemanha (63%), apontando para a necessidade de um debate mais amplo sobre os nossos desafios fiscais.

Ao contrário da visão muito propagada na mídia, o gasto público planejado pode ser convertido em ferramenta de desenvolvimento econômico quando direcionado a investimentos estratégicos e a iniciativas que reduzam as desigualdades sociais, contribuam para a mitigação de impactos ambientais e promovam o desenvolvimento de setores e tecnologias verdes.

A dívida pública do Brasil não destoa daquela das maiores economias

Desconstruir o discurso do terrorismo fiscal é um passo essencial para abrir espaço a uma reflexão mais responsável e objetiva sobre o tipo de ajuste fiscal que o País realmente precisa. Se o objetivo é garantir a sustentabilidade fiscal ao mesmo tempo que se combatem as desigualdades sociais e a mudança climática, é crucial elencar as prioridades e diretrizes que orientam o gasto público e a arrecadação. Mais do que cortes indiscriminados de gastos, alterações na política fiscal devem priorizar eficiência e equidade, eliminando despesas improdutivas e fortalecendo a arrecadação por meio de um sistema mais equilibrado e progressivo. Esta tem sido a tônica do ajuste buscado pelo governo Lula.

O último Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do governo confirma que o País caminha para cumprir as metas estabelecidas no arcabouço fiscal. As contas públicas têm se mantido controladas como planejado, embora ainda existam pontos que exigirão acertos em 2026. A dívida, por exemplo, persiste como preocupação, mas é bom lembrar que ela é fortemente impactada pela manutenção da taxa Selic em níveis elevados. Pelo lado da arrecadação, mais do que simplesmente aumentar receitas, o desafio é criar um sistema fiscal que enfrente privilégios e desigualdades.

Nesse sentido, a recente ampliação da isenção do Imposto de Renda para quem recebe até 5 mil reais por mês, compensada pela elevação do IR para contribuintes de alta renda, representa um avanço histórico. A medida alivia a carga tributária sobre as rendas menores e melhora a progressividade do sistema, impulsionando o consumo e o crescimento.

Para garantir um aumento da arrecadação sem necessariamente elevar a carga tributária, o Brasil pode ainda avançar em outras frentes. Um dos passos mais importantes é o combate permanente à sonegação fiscal, que continua a drenar bilhões de reais anualmente dos cofres públicos. O País perde uma considerável arrecadação potencial com fraudes e práticas ilícitas, enquanto avanços tecnológicos e um controle mais eficiente poderiam reduzir significativamente essas perdas. A proposta do governo de ampliar o imposto sobre apostas online (bets), ativos financeiros isentos e fintechs é outro exemplo de como é possível aumentar a arrecadação de forma mais justa. Esse tipo de medida é socialmente desejável porque mira setores que possuem significativa geração de receitas, mas que, até recentemente, eram pouco ou nada tributados.

É importante também avançar com a tributação sobre o patrimônio. Heranças e grandes fortunas ainda são subtributadas no Brasil em relação a outros países. Implementar essa tributação, ao lado de medidas que ampliem a base arrecadatória, pode gerar recursos adicionais para compensar reduções de impostos sobre consumo e produção, a exemplo da reforma do IR.

Pelo lado das despesas, há também uma lista de aprimoramentos a ser implementados. Em primeiro lugar, a elevada parcela da dívida pública brasileira indexada à taxa Selic torna o orçamento federal muito sensível às decisões de política monetária. Diferentemente de outras economias, onde predominam títulos prefixados ou indexados à inflação, o Brasil estrutura parte relevante do estoque de dívida atrelada à Selic. Com isso, qualquer elevação da taxa básica, que em outros países afeta diretamente apenas o mercado interbancário, aqui se converte imediatamente em aumento do custo de carregamento da dívida.

Combater os supersalários e penduricalhos no serviço público aliviaria os cofres do Tesouro – Imagem: Gervásio Baptista/STF

Essa dinâmica oferece proteção aos credores, mas impõe elevado custo fiscal ao Estado, ampliando rapidamente a despesa com juros e comprimindo o espaço disponível para investimentos públicos e políticas de longo prazo. A Selic não existe para remunerar a dívida, a dívida é que foi estruturada para seguir a Selic. Reduzir a indexação da dívida pública à Selic, portanto, facilitaria o ajuste fiscal.

Já os gastos tributários, que representam renúncias fiscais vultosas concedidas a setores pouco produtivos ou com limitada contrapartida social, precisam ser reavaliados com urgência. O Brasil gasta cerca de 500 bilhões de reais anualmente com isenções e tratamentos fiscais privilegiados que, em muitos casos, poderiam ser redirecionados a programas sociais e investimentos estratégicos, gerando um retorno muito mais significativo à sociedade. Exemplos claros de isenção com benefício questionável foram a desoneração da folha de pagamentos e o PERSE.

Por fim, as pensões de militares e os salários públicos acima do teto representam privilégios que geram gastos consideráveis. A resolução dessas distorções não só possibilitaria a redução do gasto, como também contribuiria para a redução das desigualdades geradas.

Em suma, ajustes que visem a redução de distorções, maior progressividade e sustentabilidade ambiental, como perseguidos até aqui pelo atual governo, podem consolidar conquistas recentes e impulsionar o desenvolvimento sustentável.

O que está em jogo é o modelo de país que desejamos construir. Está na hora de um debate mais maduro

De fato, dados recentes mostram que o Brasil vive um período de avanços significativos em indicadores econômicos, sociais e ambientais. O País alcançou, no trimestre encerrado em outubro, a marca histórica de 5,4% na taxa de desemprego, o menor índice em 14 anos. O mercado de trabalho aquecido tem um papel central não apenas na geração de empregos, mas no aumento da renda das camadas mais pobres da população. Não surpreende, portanto, que a renda média tenha atingido o maior nível da série histórica, enquanto os índices de pobreza e desigualdade tenham descido aos patamares mais baixos das últimas três décadas.

Cabe ressaltar ainda a redução dos índices de desmatamento. Embora seja inegável a melhora em relação ao último governo, ainda é preciso avançar mais nessa área, o que requer maiores investimentos públicos.

Desmontar o discurso de que o Brasil está “quebrado” não é apenas necessário para corrigir uma visão distorcida da rea­lidade, mas para abrir caminho a um debate mais amplo e maduro sobre o papel da política fiscal do desenvolvimento do País. Reduzir gastos essenciais ou promover cortes indiscriminados com base na lógica de austeridade perpétua não é uma resposta compatível com os desafios sociais e ambientais que o Brasil enfrenta. Um ajuste fiscal que foque na reestruturação das receitas, tornando-as mais justas e eficientes, e na realocação estratégica das despesas, pode ser uma poderosa ferramenta para a construção de um crescimento mais pujante, inclusivo e de menor impacto ambiental.

O que está em jogo não é apenas o equilíbrio das contas públicas, mas, sobretudo, o modelo de país que queremos construir. É decisivo um modelo que reconheça os números em sua complexidade e os utilize para criar soluções de impacto, não para perpetuar discursos alarmistas que divergem do que realmente precisa ser feito. •


*Fabricio Missio é economista, professor de Economia do Cedeplar/UFMG desde 2016. Doutor em Economia pelo Cedeplar/UFMG, mestre em Economia pela UFPR e especialista em Estatística e Modelagem Quantitativa pela UFSM; João Prates Romero é economista, professor de Economia do Cedeplar/UFMG, subcoordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFMG e coordenador do Observatório do Desenvolvimento do Cedeplar/UFMG. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Cambridge, graduado e mestre em Economia pela UFMG.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Qual cinto apertar’

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