Economia
Procura-se xerife
Sob pressão dos tubarões das finanças, a Comissão de Valores Mobiliários escolherá novos diretores


Na quarta-feira 31, a atuação dos lobbies para a primeira escolha de um diretor da Comissão de Valores Mobiliários no governo Lula, em substituição a Alexandre Rangel, indicado por Jair Bolsonaro que decidiu renunciar ao cargo, atingiu intensidade máxima, no contexto de confrontos políticos intensos entre Congresso e governo. A CVM é normalmente associada à imagem do xerife, cada vez mais necessário, de um mercado de capitais com trapaças como a cometida na Lojas Americanas e de aberrações como a distribuição, pela Petrobras, no ano passado, do maior volume de dividendos do planeta, injustificável diante das circunstâncias internas e internacionais.
Não há chapas, apenas campanhas por telefone e grupos de redes sociais em torno de nomes. Até quarta-feira, os candidatos mais mencionados nessas conversas para a vaga de Rangel eram os de Marina Copola, do Yazbek Advogados, Gabriela Codorniz, ex-sócia do Trindade Advogados, Laura Patella, do E.Munhoz Advogados, e Igor Muniz, advogado interno da Petrobras. Copola, Codorniz e Patella contaram com a cobertura, nas últimas semanas, da chamada mídia corporativa, que menciona Muniz como um candidato que “corre em paralelo”.
Há dúvida sobre a correspondência entre essa designação e os fatos, visto que o advogado da Petrobras parece contar com apoios relevantes. “Igor Muniz é um profissional com experiência bastante abrangente, na medida em que, enquanto funcionário da Petrobras, tem uma visão da maior empresa de capital aberto do País, foi conselheiro de administração de ao menos duas empresas de grande porte e lidou com reestruturações e estruturações financeiras. Além disso, como coordenador da comissão de mercado de capitais da OAB do Rio de Janeiro, tem sido um dos maiores propulsores do debate entre os advogados societários e de mercado de capitais. Esta visão abrangente contribui para que ele tenha uma incomum independência”, destaca Francisco Petros, advogado especialista em direito societário e mercado de capitais, integrante do conselho de administração da petroleira.
A crise da Americanas criou um novo paradigma e isso tende a se refletir na renovação da CVM
As candidatas relacionadas contariam, segundo versão corrente no mercado, com o apoio do secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, que pretenderia, desse modo, criar as condições, na CVM, para se candidatar, mais adiante, à presidência da autarquia. Fontes do ministério negam. Além de ter ocupado diversos cargos públicos importantes em gestões do PT, Pinto trabalhou na Gávea Investimentos, de Arminio Fraga, e no escritório de Marcelo Trindade, do qual a candidata Gabriela Codorniz foi sócia. Trindade foi diretor da CVM e concorreu ao cargo de governador do Rio de Janeiro pelo Partido Novo.
Segundo fontes abalizadas, a crise da Lojas Americanas criou um novo paradigma no mercado de capitais brasileiro e as circunstâncias interferem no processo de renovação na CVM. Pela primeira vez, uma fraude colocou em risco o próprio sistema de análise de crédito dos bancos. Os detalhes foram divulgados amplamente na mídia. Essas instituições assinaram cartas de circularização que continham falsidades ideológicas e documentais. Circularização é o procedimento pelo qual determinadas operações ou saldos são validados nas contas contábeis por meio de solicitação de informações a terceiros, para efeito de confirmação.
Os bancos retrucaram que não se tratava de risco sacado, mas as evidências parecem indicar o oposto. O risco sacado é uma operação de antecipação de recebíveis que, do modo como era manejada pela Americanas, tornou-se uma esperteza para jogar para frente a sua estrutura de dívida, mascarando-a no balanço.
Dias contados. Rangel, indicado por Bolsonaro, pede para sair – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag. Senado
Com a decretação da recuperação judicial da Lojas Americanas, as instituições financeiras se viram em uma condição contraditória, de credores que queriam receber o seu dinheiro e, ao mesmo tempo, de vítimas da fraude. Há, inclusive, a alegação de que enviaram cartas de circularização falsas para os auditores independentes. As perspectivas não são animadoras e acenam com desdobramentos tanto para os chamados acionistas de referência, Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, do 3G Capital, quanto para diretores, conselheiros, comitês, eventualmente no âmbito criminal, para responderem por falsidade documental, ideológica e testemunhal, e fraude colossal em prejuízo dos investidores.
A situação ambígua das instituições financeiras, de vítimas e coautores, cria, para essas instituições, a necessidade de uma reconfiguração de normas e procedimentos que teria de contar, necessariamente, com a validação da CVM, o que confere grande importância à renovação da sua diretoria. No começo do ano, vários integrantes do mercado veicularam nos jornais pesadas críticas ao conflito de interesses existente no comitê externo da Americanas, presidido por Otavio Yazbek, sócio do Yazbek Advogados, ao qual está vinculada a candidata Marina Copola. O Bradesco chegou a oficializar, em uma petição, sua dúvida quanto à imparcialidade dos integrantes da comissão.
Todos esses fatos repercutem na renovação da direção da autarquia. Um investidor institucional, sob condição de anonimato, assegura que “grandes escritórios estão se movimentando para lotear os cargos da CVM, principalmente na diretoria”. Instada a se pronunciar sobre o assunto, Maria Isabel do Prado Bocater, sócia da Bocater, Camargo, Costa e Silva Advogados, com 21 anos de experiência na CVM, foi direta: “Isso não é bom, não há dúvida de que não é bom”, mas fez ressalvas. Na advocacia, diz, os profissionais costumam ser muito independentes, se organizam em escritórios para facilitar o exercício da profissão, que tem um caráter muito forte de responsabilidade individual. Isso facilita a migração de um escritório para o outro. “Portanto, pertencer a um escritório ou a outro, não acho que seja muito relevante.”
Quanto aos requisitos para o cargo de diretor da CVM, observa Bocater, a lei é vaga, fala em reputação ilibada e reconhecida competência no mercado de valores mobiliários e nada mais, e que os aspectos mais importantes são a diversidade de formações, devido à complexidade dos assuntos tratados, e a competência técnica.
A dupla condição das instituições financeiras, de vítimas e coautores, pressiona pela reconfiguração de normas
Gustavo Borba, sócio da Tavares Borba Advogados Associados e ex-diretor da CVM, concorda. “Sobre a renovação do colegiado, entendo que o ideal seria priorizar a pluralidade de perfis, para que profissionais com diferentes conhecimentos, experiências e visões possam analisar as diversas perspectivas das complexas matérias definidas pela CVM. Seria especialmente importante termos ao menos um profissional da área de contabilidade, considerando a relevância dessa expertise para a regulação. Além disso, diz, considerando que a CVM possui um quadro técnico com alguns profissionais de excelente nível, seria interessante que as nomeações prestigiassem a tradição de escolher um funcionário da autarquia para o colegiado, o que permitiria a mescla dessa visão interna com aquela dos indicados oriundos do mercado.
Ao longo dos anos, a CVM nunca conseguiu convencer plenamente os agentes financeiros de sua isenção e independência. Em vários conflitos importantes, a autarquia portou-se como aquele xerife que dorme na delegacia enquanto o cabaré pega fogo. Eis uma boa oportunidade, mais uma, de colocar alguma ordem em Tombstone. •
Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Procura-se xerife ‘
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