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Privatizações: A venda de estatais na xepa causou prejuízos irreparáveis ao Erário

Mesmo quando a situação das contas públicas melhora, o governo faz o possível e o inconfessável para torrar o patrimônio público

Privatizações: A venda de estatais na xepa causou prejuízos irreparáveis ao Erário
Privatizações: A venda de estatais na xepa causou prejuízos irreparáveis ao Erário
Por sorte, o Posto Ipiranga não sabia as respostas - Imagem: Victor Tonelli/OCDE
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Apesar da contínua campanha do governo e da mídia contra o Estado, a maioria da população permanece contrária às privatizações, segundo pesquisas, e a explicação é o péssimo resultado prático da transferência para a iniciativa privada de serviços e atividades essenciais para a vida dos cidadãos. Serviços caros, de má qualidade, prestados com um atendimento que despreza os chamados clientes, proporcionam, entretanto, milhões de reais despejados nos bolsos dos poucos beneficiados com as operações.

Embora inepto até no quesito privatização, uma das promessas de campanha de Bolsonaro e Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, o atual governo obteve até dezembro 227 bilhões de reais com vendas sem justificativa aceitável à luz dos seus próprios critérios, sugere o resultado das estatais publicado pela própria União, detalhado adiante. Os ganhos colossais com aquisições feitas na bacia das almas, isto é, pelo menor preço, perpetuam-se no tempo e isso encoraja todo tipo de expediente para forçar as operações, como alerta o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, no livro Privatizations: Successes and Failures, de Gérard Roland.

PESQUISAS REVELAM: A MAIORIA DOS BRASILEIROS É CONTRA A DESESTATIZAÇÃO DA PETROBRAS E DA ELETROBRAS

A ausência de justificativa para privatizar é demonstrada inclusive em números. Mesmo quando a situação das contas públicas melhora, como vem ocorrendo, o governo faz o possível e o inconfessável para torrar o patrimônio público, inclusive a preços vis. A justificativa liberal clássica, de que é preciso privatizar porque o controle privado da propriedade e da gestão é mais eficiente, é desconsiderada sem qualquer pudor e a preferência recai justo sobre as companhias mais lucrativas. O Boletim das Empresas Estatais Federais do primeiro trimestre, publicado pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais do Ministério da Economia, mostra que o resultado líquido acumulado dos grupos Eletrobras, Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e BNDES, empresas públicas que o governo ainda não conseguiu privatizar por completo, somou 135,4 bilhões de reais, aumento de 154,4 bilhões em relação ao registrado no mesmo período do ano anterior, que foi deficitário em 19 bilhões.

Bolsonaro ameaçou privatizar o Banco do Brasil, mas recuou por conveniência eleitoral – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

A venda de estatais e de suas ações foi feita sem passar pelo Congresso e com o auxílio do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, que em 2019 autorizou a privatização direta de subsidiá­rias dessas empresas, um empurrão para o desmonte da Petrobras, entre outras. A decisão do STF possibilitou a venda da BR Distribuidora, da transportadora de gás TAG e das refinarias antes controladas pela petroleira, com dano real e imediato à população, em especial à sua parcela mais pobre. A privatização da TAG é exemplar da lógica do processo, por implicar o aumento das despesas de aluguel da Petrobras para contratação dos mesmos serviços de transporte de gás antes prestados pela agora ex-controlada. Em nove anos, a contar da data da transação, a petroleira devolverá, com pagamento de aluguel, tudo o que recebeu pela venda da TAG, no total líquido de 27,9 bilhões de reais. “As estatais são ativos estratégicos para o País. Veja o desastre que foi a questão de o governo se desfazer das fábricas de fertilizantes, tínhamos três em pleno funcionamento e uma em construção. O governo Bolsonaro fechou uma, arrendou duas e está vendendo aquela que está com mais de 80% das obras concluídas”, dispara Deyvid Bacelar, presidente da Federação Única dos Petroleiros. Quem apoia privatização, diz, é dono de capital. A população percebeu que o discurso de que é preciso privatizar para melhorar os serviços e os preços é uma falácia.

O atropelo dos cuidados e dos procedimentos indispensáveis ao trato dos bens e do interesse públicos generalizou-se nos processos de desestatização. “Mesmo em estados em que as respectivas Constituições obrigavam a realização de consultas populares sobre a privatização de determinados setores, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o sistema político sempre buscou se desvincular dessas obrigações, seja promovendo formas de privatização disfarçada, como acordos de acionistas no caso da Cemig, de Minas Gerais, ou a retirada desses dispositivos de consulta popular do texto da Constituição estadual, como fez o ex-governador Eduardo Leite no Rio Grande do Sul”, enumera Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP.

Os Correios continuam na fila da privatização. A depender de quem vença a eleição, a estatal sairá da lista das empresas vendáveis – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

A pressão para privatizar a Eletrobras a todo custo é um dos exemplos do atropelo de normas e procedimentos. Houve atraso considerável do processo para cumprimento das exigências legais, principalmente dos EUA, onde ações da empresa são negociadas na Bolsa. Nessas condições, se fosse para cumprir todos os trâmites no Brasil, a privatização ficaria para o próximo ano, com risco de um eventual governo distinto do atual barrar o processo. “Em condições normais, seguindo todos os ritos necessários, eles não conseguiriam privatizar a empresa, mas o que se vê é que os órgãos reguladores têm avalizado todo o processo sem a menor preocupação com a legalidade e com a regularidade. A continuar dessa forma, é possível que eles consigam fazer essa venda até outubro. Há uma situação de total leniência por parte dos órgãos reguladores, como a Comissão de Valores Mobiliários e a agência reguladora, a Aneel”, dispara Ikaro Chaves, diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel).

O STF FACILITOU O DESMONTE DA PETROBRAS, AO PERMITIR A VENDA DIRETA DAS SUBSIDIÁRIAS

Pode parecer pouco a privatização de cinco estatais dentre as 50 visadas pelo governo, mas, neste caso, os números talvez sejam ilusórios, pois o interesse e a urgência recaem precisamente sobre as empresas mais estratégicas e lucrativas. As operações envolvem montanhas de dinheiro, mesmo com a venda realizada a preços aviltados, mostram os valores da privatização da TAG, de 33,5 bilhões de reais, da BR Distribuidora, de 21 bilhões, do campo de petróleo de Tartaruga Verde, de 11,3 bilhões, e da Refinaria Landulfo Alves, de 8,8 bilhões.

Na campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro descartou privatizar a Caixa, o Banco do Brasil e o núcleo de exploração da Petrobras. No ano passado, cogitou a venda­ do BB, mas voltou atrás, em um vaivém determinado pelos interesses eleitorais de cada momento. A desestatização completa da Petrobras nunca saiu do discurso do governo e agora ganha novas possibilidades de se concretizar com a defesa, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, na terça-feira 5, da revisão da Lei das Estatais para mudar as regras e viabilizar a venda. Em 2019, Bolsonaro prometeu iniciar o processo de desestatizações com ao menos 17 empresas, entre elas Correios, Eletrobras, Telebras, Dataprev, Lotex e Casa da Moeda, para faturar 2 trilhões de reais ainda nos primeiros 12 meses de mandato. Nos dois últimos anos, nenhuma estatal de peso foi vendida. Em janeiro, a lista mínima de pretensões ficou ainda menor, com Eletrobras, Correios e Porto de Santos. A lista de privatizações prometidas para 2022 inclui Eletrobras e Correios, a primeira enroscada no TCU e a segunda, no próprio Congresso.

Os compradores da Cedae, companhia de saneamento do Rio de Janeiro, investem nas áreas mais rentáveis. A administração de hospitais pelas OSs virou um ninho de escândalos – Imagem: Tomas Silva/ABR e Diogo Moreira/GOVSP

A maioria dos brasileiros sente no bolso que a privatização é uma roubada. O caso da Refinaria Landulpho Alves (RLAM), hoje Refinaria de Mataripe, ilustra bem o problema. Desde que foi comprada pelo fundo Mubadala, sublinha Bacelar, os preços dos combustíveis subiram na Bahia mais do que em outros estados. Além disso, a empresa priorizou a exportação do óleo combustível e, com essa decisão, provocou a escassez do produto para abastecimento dos navios que atracam em Salvador, prejudicando o turismo em cruzeiros marítimos. “As privatizações seguem tendo resultados desesperadores para o povo. No Rio de Janeiro, os preços das passagens das barcas, metrô e trens comprometem a renda do trabalhador, obrigando muitos a dormir nas ruas durante a semana, para economizar o dinheiro gasto no deslocamento para o trabalho. Estes compõem uma parte considerável dos mais de 11 mil moradores de ruas da região central da cidade”, ressalta Ary Girota, presidente do Sindicato de Trabalhadores nos Serviços de Água e Esgotos do Rio de Janeiro. Outro caso é a privatização de parte dos sistemas de distribuição de água da Cedae. Várias localidades da Região Metropolitana fluminense, diz Girota, sofrem com o desabastecimento em consequência da determinação dos gestores privados de privilegiar locais onde o retorno financeiro é garantido. Na saúde pública, diz Chaves, o domínio do critério da lucratividade é gritante com a ampla privatização que entregou às organizações sociais o controle de hospitais e do sistema de saúde de estados inteiros. Parece não restar área da economia imune à pressão privatizante.

Um dos problemas das privatizações no País é que elas se restringem à operação, mas existem funções inerentes ao Estado que só ele pode executar, de regulação, definição das regras, coordenação, fiscalização e supervisão, sublinha o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo. Com a privatização malfeita e apressada, diz, tendo em vista só a arrecadação, não o cuidado indispensável quando se trata de transferir monopólios e oligopólios públicos para o setor privado, quem paga a conta é a sociedade. “Os liberais costumam citar como exemplo positivo a privatização das telecomunicações, por ter generalizado o acesso a esse serviço. Esse efeito não é, contudo, resultado apenas da privatização, mas da espetacular mudança tecnológica no setor, ocorrida mundialmente”. O que o País tem hoje é um serviço de amplo alcance, diz, mas de péssima qualidade, tanto no caso da telefonia quanto da internet, e caríssimo, com uma das tarifas mais altas do mundo. “As empresas tratam o usuário, como gostam de chamar, como verdadeiro idiota. Se você tem um problema, eles te jogam num canal onde é um robô que te atende, mas não entende o que você fala. Você perde horas, às vezes dias, na tentativa de resolver a sua questão”, dispara Lacerda. O pior deles é o apagão de 2001, com a privatização malfeita. “O que está por trás disso é a ausência de um projeto do que fazer com o Estado, qual o seu papel.”

GUEDES PROMETEU VENDER 50 ESTATAIS. DESFEZ-SE DE CINCO, MAS TODAS EM ÁREAS ESTRATÉGICAS E RENTÁVEIS

Várias pesquisas mostraram a rejeição da maior parte da população às privatizações, um apoio declinante ao longo dos anos, sob efeito da propaganda maciça do governo e da mídia, mas que subsiste. Um levantamento recente do PoderData­ mostrou que 54% dos entrevistados são contra a privatização da Petrobras e 56% desaprovam a da Eletrobras. Para 43%, o governo não deveria privatizar nada, uma queda importante em relação aos 53% de seis meses atrás. Essa redução é relativizada, em alguma medida, pelo fato de apenas 20% dos entrevistados acharem que todas as estatais deveriam ser privatizadas. “A maioria da população sempre foi contrária às privatizações. Todos sentem pessoalmente o impacto da elevação de preços e de tarifas dos serviços públicos, a péssima qualidade da prestação e a impossibilidade prática de qualquer reclamação. Essa proporção tem caído, no entanto, até em virtude da maciça propaganda midiática em favor do discurso neo­liberal”, destaca Bercovici. A opinião pública popular, diz, foi relevante nas décadas de 1940 a 1960, particularmente com a campanha O Petróleo É Nosso, que propiciou a criação da Petrobras. “De 1985 para cá, há um paradoxal esvaziamento da importância das manifestações populares e da opinião popular sobre os temas relativos à soberania e à política econômica.”

O racionamento de 2001 é triste memória da desregulamentação atabalhoada – Imagem: Paulo Liebert/Estadão Conteúdo

Chaves complementa: “Vivemos numa situação em que a opinião pública tem muito pouco peso. As instituições brasileiras estão praticamente imunes à opinião pública. Mesmo com uma resistência muito grande ao governo Bolsonaro, repleto de escândalos, não foi aberto o processo de impeachment, casos de corrupção acontecem sem a mobilização da sociedade. A indignação não tem se transformado em mobilização e a mobilização não tem sido eficaz no sentido de sensibilizar os Poderes da República, principalmente o Legislativo”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A volúpia das privatizações”

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