Economia

assine e leia

Palavras ao vento

A OMC completa 30 anos escanteada pelo protecionismo crescente

Palavras ao vento
Palavras ao vento
A organização se tornou disfuncional – Imagem: Prime Vision/OMC
Apoie Siga-nos no

Quando os ministros do Comércio se reuniram na cidade marroquina de ­Marrakesh, há 30 anos, para assinar o acordo que criou a Organização Mundial do Comércio, o clima era de celebração. O Muro de Berlim tinha caído pouco antes, o comunismo havia desmoronado e corriam ideias otimistas de que o organismo abriria novos mercados e atuaria como árbitro nas disputas entre países.

O clima hoje é muito mais sombrio do que era em abril de 1994. Qualquer entusiasmo por acordos inovadores de liberalização comercial desapareceu há décadas e foi substituído por um protecionismo disfarçado – e muitas vezes aberto. As relações entre Estados Unidos e China estão em declínio e provavelmente piorarão. No fim do mês passado, a China abriu formalmente um processo na OMC contra os EUA, no qual Pequim tentou salvaguardar sua indústria de veículos elétricos, dizendo que os subsídios de Joe Biden para promover a produção verde em seu país violam as regras comerciais globais.

A disputa sobre a Lei de Redução da Inflação de Biden destaca três tendências: uma maré baixa na globalização, a relação cada vez mais difícil entre as ­duas maiores economias do mundo e a situação disfuncional da própria OMC. Há pouca esperança de que o caso da China contra os EUA algum dia seja solucionado, pois a OMC não pode resolver disputas. Qualquer país que esteja do lado errado de uma decisão tem o direito de recorrer, mas o órgão de recursos precisa de juízes para funcionar, e desde o fim de 2019 os Estados Unidos têm bloquea­do as nomeações para o painel.

Essa não é a única razão pela qual ­Washington permanecerá firme em relação à IRA. Na raiz, o problema é causado pelo enorme excedente comercial da China com os EUA e pela convicção do governo Biden de que o déficit norte-americano é consequência de uma concorrência desleal. Em resposta à objeção formal de Pequim ao apoio financeiro fornecido pelo IRA, Katherine Tai, representante comercial dos EUA, disse que se trata de um caso em que a panela chama a chaleira de preta, dado o histórico da China de proteger seus próprios fabricantes.

Para Neil Shearing, economista-chefe da consultoria Capital Economics, houve uma “expansão substancial” da capacidade de produção chinesa desde a pandemia de Covid-19. Em parte, diz, isso reflete uma resposta ao aumento da procura global, mas também, como no caso dos veículos elétricos, representa uma decisão política deliberada de Pequim de procurar cotas de mercado.

Donald Trump, rival de Biden na corrida deste ano à Casa Branca, prometeu ações duras para evitar que o mercado de automóveis norte-americano seja inundado. Depois de impor tarifas de 300 bilhões de dólares sobre as importações chinesas quando era presidente, Trump diz agora que adotaria uma tarifa de 100% sobre os automóveis chineses importados do México, uma de 50% sobre outros produtos chineses e uma tarifa de 10% sobre os produtos fabricados em outros paí­ses. “Aquelas grandes fábricas de carros monstruosos que vocês estão construindo no México agora e acham que vão conseguir não contratar americanos e vender o carro para nós, não”, disse Trump. “Vamos colocar uma tarifa de 100% em cada carro que passar pelo estacionamento.”

Trump deixou claro que não está incomodado com a possibilidade de a China ou outros países responderem com medidas retaliatórias que punam os exportadores dos EUA. “Você nos ferra e nós ferramos você. É muito simples, muito justo”, afirma.

A fé no livre-comércio arrefeceu, enquanto cresce a tensão entre EUA e China

Biden usa uma linguagem menos emotiva, mas na realidade adotou uma postura dura com a China no comércio. ­Keith Rockwell, da Fundação Hinrich e ex-diretor da OMC, afirma: “Não importa quem ganhe as eleições presidenciais, o futuro das relações comerciais ­EUA-China não parece brilhante. Todas as tarifas de Trump continuam em vigor. Biden não removeu nenhuma”.

Shearing acrescenta: “Uma das poucas questões bipartidárias que restam em Washington é a natureza desequilibrada da relação comercial dos EUA com a China. Os investidores podem estar nervosos com o potencial retorno de Trump e a ameaça de uma nova guerra comercial, mas esse conflito parece cada vez mais provável, quer o próximo governo seja democrata ou republicano”.

O cisma entre EUA e China não é a única fonte de tensão comercial. ­Como observou a diretora-geral da OMC, ­Ngozi ­Okonjo-Iweala, além das conhecidas disputas globais Norte-Sul, houve sinais na recente reunião ministerial em Abu Dabi de divisões Sul-Sul. Estas refletem a insistência entre alguns dos maiores países em desenvolvimento – como a Índia e o Brasil – de que suas vozes devem ser ouvidas. ­Okonjo-Iweala declarou que não poderia ser “tudo como sempre” quando assumiu o cargo em ­Genebra há pouco mais de três anos, mas teve dificuldade para chegar a um acordo entre os 166 integrantes da OMC.

Evan Rogerson, antigo alto funcionário da organização e hoje atuando no Centro de Estudos do Multilateralismo, em Cingapura, diz que a recente reunião ministerial em Abu Dabi foi uma desilusão e não obteve qualquer progresso multilateral substancial, além da adesão de dois pequenos países, ­Timor-Leste e ­Comores. “Não retroceder em uma moratória de 25 anos sobre taxas de comércio eletrônico foi considerado um sucesso”, lamenta. “Nos pontos críticos da agenda, comércio agrícola, subsídios à pesca e reforma do mecanismo de resolução de litígios da OMC, os ministros simplesmente deram o pontapé inicial, comprometendo-se a continuar o trabalho e a prorrogar mais uma vez os prazos que poucos esperam que sejam cumpridos.”

Em artigo recente, ­Okonjo-Iweala disse que uma reforma significativa exigiria que os países em desenvolvimento assumissem um papel mais importante. “O resultado final é que é necessário um esforço coletivo concertado para cumprir os acordos da OMC e criar uma organização capaz de enfrentar os problemas deste século. O fracasso em alcançar esses objetivos não pode mais ser atribuí­do apenas aos Estados Unidos, ou a qualquer outro país, nesse caso, por falta de liderança ou perda de interesse.”

A posição dos EUA será, no entanto, crítica para que a organização cumpra seu papel de policiar o comércio global. Se Biden for reeleito, avalia Rockwell, é possível que num segundo mandato ele tenha a mente mais aberta para algumas questões comerciais, incluída a forma como as disputas são tratadas. “Se Trump vencer, não haverá mudança.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palavras ao vento’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo