Economia
Ouro verde
Com a letargia da Anvisa para regular o cultivo de cannabis, o Brasil desperdiça oportunidades em um mercado que movimenta 30 bilhões de dólares por ano no mundo


Maior exportador de commodities agropecuárias do mundo, o Brasil tem potencial para se tornar também um dos principais produtores de cannabis medicinal e cânhamo industrial. O mercado global da maconha legalizada movimentou quase 30 bilhões de dólares no ano passado e pode alcançar 58 bilhões até 2028, segundo estimativa da BDSA, principal empresa de pesquisas do setor, com sede em Louisville, no Colorado. Enquanto os Estados Unidos concentram 56% das transações, a presença brasileira ainda é insignificante. Não por acaso: atrasado na regulamentação do cultivo da planta, o País vem desperdiçando oportunidades.
Em novembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça autorizou o cultivo de cannabis para fins terapêuticos e concedeu seis meses para que a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) elaborassem uma norma permitindo a importação de sementes, o plantio, a fabricação de medicamentos e a comercialização dos produtos. Em junho passado, o prazo foi prorrogado até 30 de setembro. Agora, a Advocacia-Geral da União solicitou mais 180 dias para concluir o processo. O novo pedido prevê um cronograma com etapas a ser cumpridas nesse período, incluindo audiências públicas com a sociedade civil, análise e consolidação das contribuições recebidas, elaboração de documentos e da minuta do texto regulatório e, por fim, a publicação da norma propriamente dita.
Mesmo com as atuais restrições, 672 mil brasileiros fazem tratamentos com maconha medicinal – Imagem: Redes Sociais/Prefeitura de Volta Redonda/RJ
Apesar da demora, especialistas avaliam que a nova diretoria da Anvisa demonstra muita disposição para o diálogo. “Talvez seja até melhor assim, do que apresentar uma norma muito restritiva, que poderia excluir vários agentes importantes desse cenário”, afirma Maria Riscala, CEO da Kaya Mind, empresa de inteligência de mercado especializada em cannabis. A procura por medicamentos derivados da planta cresce de forma vertiginosa no País, mesmo diante das limitações impostas pela legislação. Em 2024, foram registrados 672 mil pacientes, aumento de 56% em relação ao ano anterior. “Em apenas quatro anos, podemos chegar a 6,9 milhões de pacientes, considerando apenas 26 patologias”, estima Riscala. “Nesse cenário, o faturamento anual pode superar 9,5 bilhões de reais.”
A projeção diz respeito apenas à cadeia produtiva da cannabis medicinal. Já o cânhamo – subespécie da maconha sem efeito psicoativo, que possui uma infinidade de aplicações industriais – pode movimentar 4,9 bilhões de reais a partir do quarto ano de uma regulamentação ampla, segundo estimativa da Kaya Mind. O debate sobre a liberação do uso recreativo da maconha ainda engatinha no País, mas poderia ganhar tração, pois representa um mercado ainda mais promissor: se fosse regulamentado, poderia gerar 12 bilhões de reais por ano. Somados, os três segmentos têm capacidade de criar até 328 mil postos de trabalho em cinco anos.
Atualmente, o acesso aos medicamentos de cannabis no Brasil ocorre por três vias. Quase metade dos pacientes (47%) recorre à importação direta; 31% compram o produto em farmácias, com retenção da receita médica; e os 22% restantes buscam acolhimento em associações cannábicas, que oferecem os tratamentos a preços mais acessíveis. Esse último arranjo, embora preste um serviço essencial, ainda depende de liminares judiciais para assegurar o direito ao cultivo, à produção e à distribuição.
A iminente regulamentação do cultivo de cannabis para fins terapêuticos já atrai grandes players da indústria farmacêutica. Com insumos nacionais e a produção internalizada, a tendência é de queda nos preços dos medicamentos. Um frasco de canabidiol chega a custar, nas prateleiras das drogarias, até três vezes mais do que o óleo produzido por associações. Embora haja receio de que a big pharma passe a controlar o mercado e imponha suas próprias políticas de preços, Riscala acredita haver espaço para todos: “No mundo inteiro, acharam que as entidades canábicas seriam engolidas, mas isso não aconteceu. Elas continuam com muita relevância”.
O cultivo de cânhamo é mais rentável que plantar soja
Os critérios estabelecidos pela Anvisa podem, porém, restringir o mercado às grandes indústrias. Em agosto, os diretores da agência discutiram a proposta de incluir a cannabis no Anexo 1 da Portaria 344/1998, o que permitiria o cultivo da planta para fins medicinais no Brasil, desde que o nível de tetrahidrocanabinol (THC), o componente psicoativo da maconha, seja igual ou inferior a 0,3%. Trata-se de uma concentração tão baixa que dificilmente seria alcançada por métodos artesanais usados pelas associações. Curiosamente, a mesma Anvisa autorizou, em 2022, o registro de um medicamento com um teor dessa substância nove vezes superior ao limite proposto: 2,7%. Trata-se do Mevatyl, produzido pela britânica GW Pharma Limited, indicado para o tratamento sintomático da espasticidade associada à esclerose múltipla. Na fórmula da solução oral, a presença de THC é até maior que a de canabidiol (CBD), cuja concentração é de 2,5%.
De acordo com o psiquiatra Eulampio de Lacerda, o tratamento de diversas condições, como epilepsia, fibromialgia, Parkinson e Alzheimer, exige medicamentos com concentrações mais elevadas de THC. “Tenho pacientes autistas com disfunção na comunicação que, após a terapia com óleos extraídos da maconha, voltaram a falar”, relata. Professor da UFRN e presidente do Centro de Pesquisas e Estudos da Cannabis (Cebrapcam), entidade que também produz extratos e formulações terapêuticas a partir da planta, ele teme que, sem uma regulamentação abrangente, muitos pacientes fiquem dessassistidos. “Esse limite de 0,3% exclui muitas doenças. Só serve para atender aos interesses da indústria farmacêutica”, critica.
Ricardo Hazin, diretor-executivo da Aliança Medicinal, associação com produção em fazenda urbana em Pernambuco, também critica a limitação de THC, mas ressalta que previsibilidade e padronização são fundamentais para que a cannabis seja reconhecida como terapêutica confiável. A entidade cultiva a planta em dez contêineres marítimos, com controle genético total das inflorescências: usa clonagem a partir de uma única matriz e descarta sementes que possam gerar variações. O modelo atende mais de mil pacientes. “Assim, consigo controlar fatores climáticos e prever o que vou colher, quando e com quais características”, explica o engenheiro agrônomo. Para ampliar a adesão da classe médica, principalmente entre psiquiatras, a ONG promove oficinas e palestras, apresentando todas as etapas do cultivo e a segurança dos processos.
Não é fetiche do setor de vestuário. A fibra de cânhamo é resistente e favorece a ventilação – Imagem: Redes Sociais/Reebok
Com potencial para desenvolver toda a cadeia produtiva da cannabis medicinal, o País pode tornar-se um exportador de produtos farmacêuticos e biotecnológicos de alto valor agregado. A produção nacional de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), a partir do cultivo controlado, viabiliza formas farmacêuticas avançadas. Mais do que o óleo sublingual – extraído das flores – outras partes da planta, como folhas, caule e raízes, podem ser aproveitadas na fabricação de pomadas, loções, cápsulas e supositórios. A indústria cosmética também desponta como mercado promissor, com crescente demanda por produtos à base de cannabis, como séruns, cremes faciais e esfoliantes, já comuns em prateleiras internacionais.
Diretor da associação catarinense Santa Cannabis, Pedro Sabaciauskis acredita que o Sistema Único de Saúde pode democratizar o acesso aos tratamentos e também gerar riqueza para a agricultura familiar. Diversos municípios – como Campina Grande e João Pessoa, na Paraíba, e Velo, na Bahia – já adotaram leis ou convênios que integram a produção das entidades canábicas à demanda da rede pública. Santa Catarina aprovou a legislação mais avançada do País, garantindo o fornecimento gratuito de medicamentos à base de maconha para todas as patologias. São Paulo, por outro lado, tem uma norma restrita a menos de dez doenças. Para o especialista, essas parcerias fortalecem a economia local e podem impulsionar produções agroecológicas, com foco em itens orgânicos e de alta qualidade. “Com a economia circular, o dinheiro do SUS ficaria nos próprios estados e ajudaria a gerar renda de forma mais equilibrada”, afirma.
Apesar das restrições, o uso veterinário da cannabis medicinal avança no Brasil. Segundo o Panorama Nacional do Setor Associativo da Maconha Medicinal, mais de 7.050 animais de estimação já foram atendidos, e o uso pode estender-se também às espécies silvestres e de corte. O médico veterinário e pesquisador Lucas Pereira explica que a aplicabilidade é ampla porque “todos os vertebrados, incluindo cães e gatos, possuem o sistema endocanabinoide, alvo dos fitocanabinoides”. Os principais tratamentos incluem epilepsia refratária, dores crônicas, cuidados paliativos em casos de câncer e transtornos de estresse pós-traumático, como separação dos tutores ou maus-tratos. “É um medicamento muito mais seguro do que a morfina, por exemplo”, afirma o pós-doutor em Neurociência pela UnB.
Com a regulamentação do cânhamo, o Brasil também tem muito a lucrar com suas inúmeras aplicações industriais. Hoje, 60 países já o produzem e mais de 110 autorizam sua importação. Em parceria com o Instituto Ficus, a Embrapa elaborou um relatório detalhado sobre o tema, destacando o potencial da fibra extraída da planta para impulsionar 21 setores econômicos, incluindo os de vestuário, construção civil, cosméticos, alimentos e até o segmento naval. Tecidos feitos com cânhamo, por exemplo, permitem ventilação como o algodão e têm resistência semelhante à do linho. Já os tijolos de biomassa fabricados com a planta se destacam por serem “respiráveis”. Rica em ômega 3 e 6, a erva também vem ganhando fama como um “superalimento”, ideal para reforçar suplementos nutricionais.
Segundo Daniela Bittencourt, pesquisadora da Embrapa e coordenadora do projeto HempTech Brasil, o País tem potencial de “ser um grande player mundial na produção de cannabis e derivados nos próximos dez, 20 anos”. Com relação a outras commodities, o cânhamo oferece vantagens agronômicas e ambientais. Pode ser cultivado durante a “janela sanitária”, intervalo obrigatório de três meses entre o plantio de soja e milho, de forma a ajudar a recuperar o solo. Por ter as raízes muito profundas, a planta tem capacidade de descompactar o solo e torná-lo mais respirável para receber novas sementes. “Diferentemente do eucalipto, o cânhamo tem poder de fitorremediação, com alta capacidade de absorver gás carbônico.”
Por exigir menos cuidados que a cannabis medicinal, o cânhamo pode ser cultivado em larga escala, com vantagens competitivas em relação a outras culturas do agronegócio. Em comparação ao algodão ou à soja, é mais resistente a pragas e consome menos água – fatores que tornam o cultivo mais prático e rentável. Segundo relatório do Instituto Escolhas, essa nova commodity apresenta receita líquida média muito superior à propiciada por soja, milho ou canola (gráfico à pág. 15).
Os tijolos de biomassa fabricados com a planta se destacam por serem “respiráveis” – Imagem: Senai/CNI
Consultor internacional e CEO do Instituto Terphyto, Gastón Lepera atuou no governo de Pepe Mujica pela regulamentação do mercado de cannabis no Uruguai. Segundo ele, o Brasil deve evitar os erros dos países vizinhos e desenvolver a cadeia produtiva dos derivados no mesmo ritmo da abertura da fronteira agrícola. “O País tem condições de crescer desde o início, impulsionando também pesquisa e inovação”, afirma.
Atualmente, as pesquisas com cannabis ainda enfrentam insegurança jurídica. Muitas universidades firmam parcerias com associações para acessar os insumos, enquanto, em outros casos, os próprios pesquisadores recorrem a liminares judiciais para cultivar a planta com fins acadêmicos. “Dá trabalho e custa caro. Às vezes, isso inviabiliza descobertas científicas”, avalia o biólogo Marco Vidal, diretor de Pesquisa e Inovação do Cebrapcam.
Professora e pesquisadora da UFRPE, Letícia da Costa e Silva resume o desafio: “Sem segurança institucional e jurídica, ainda não temos sequer como avaliar o impacto da cannabis medicinal no solo brasileiro”. Diante da demanda de outros pesquisadores, ela viu a necessidade de abrir canais de diálogo entre universidades e governo. Hoje, coordena o Grupo de Trabalho Multidisciplinar, que reúne 31 instituições de pesquisa, a Embrapa e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Em nota técnica entregue ao Ministério da Saúde e à Anvisa em agosto, o grupo reivindica uma regulamentação que facilite a pesquisa em toda a cadeia produtiva.
A Anvisa pediu mais 180 dias para apresentar sua proposta de regulamentação
A pesquisadora Nídia Yoshida, da UFMS, tem grandes expectativas quanto à adaptação das sementes importadas ao clima tropical, mas teme que o limite de THC possa frear o avanço científico. “Em muitos países, grandes áreas foram destruídas porque as sementes se modificaram em razão do clima. Se a regulamentação for muito restritiva, podemos repetir o mesmo erro”, alerta. Atualmente, ela desenvolve, em parceria com a Associação Divina Flor, projetos voltados ao aproveitamento integral da planta, como a produção de dermocosméticos a partir de folhas, raízes e caules.
Thiago Ermano, diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis e Cânhamo (Abicann), monitora a regulamentação da cannabis em países vizinhos e destaca os impactos sociais positivos, como a inclusão de indígenas e quilombolas no processo produtivo. Em parceria com a Unila, a entidade está implantando um centro de inovação em Foz do Iguaçu, para desenvolver pesquisas, e tem planos de lançar dez startups.
Em países com regulamentação ampla e consolidada, a indústria da cannabis já está gerando receitas bilionárias. Nos EUA, o setor emprega mais de 440 mil trabalhadores em tempo integral. Com um mercado interno robusto, o país produz milhares de subprodutos para consumo e exportação. No Canadá, onde o cânhamo foi legalizado em 1998, o país tornou-se um dos maiores exportadores globais de sementes para alimentação. Modelos em países vizinhos também revelam potencial para inclusão social: o Paraguai, que regulamentou o cânhamo em 2019, lidera a produção na América Latina, gerando renda para pequenos agricultores e comunidades indígenas.
Lojas de cosméticos e coffee shops se multiplicam no mundo desenvolvido. A cannabis pode desenvolver o semiárido nordestino – Imagem: iStockphotos e André Borges/Agência Brasília
Segundo Lepera, o programa Hemp Guarani garante a compra antecipada de toda a produção, focando principalmente em mulheres com filhos que possuem terras, para fixar os agricultores no campo. “Comunidades antes assediadas pelo tráfico de drogas hoje se desenvolvem de forma sustentável”, diz o consultor uruguaio. A Colômbia, que também avançou na legislação, optou pelo cultivo de cannabis com até 1% de THC. “É um teor que não chega a dar ‘brisa’ e facilita a adaptação ao clima tropical, uma boa referência para o Brasil”, avalia Maria Riscala.
Após visitar diversos países para conhecer suas experiências, Lepera acredita que o maior potencial do Brasil está no Nordeste, especialmente no Semiárido. “Nos EUA, o cultivo tem se desenvolvido em regiões secas, como Oregon e Colorado. A planta adaptou-se muito bem, e pode transformar a realidade da Caatinga.” Segundo ele, a indústria nordestina tem tudo para impulsionar o desenvolvimento das áreas mais pobres. Lepera também defende que o Brasil busque parceria tecnológica com a China, que é o maior produtor e exportador mundial de cânhamo e dispõe de maquinário avançado para o cultivo e processamento das fibras.
Apesar da natural desconfiança dos sertanejos nordestinos, o alto retorno financeiro pode convencê-los a investir nesse novo setor, avalia Sabaciauskis. Já Daniela Bittencourt, pesquisadora da Embrapa, destaca que o Brasil não pode perder essa oportunidade de desenvolvimento sustentável e se mostra otimista com o processo regulatório. “Mesmo com a demora da Anvisa, acredito que avançaremos para uma regulamentação mais ampla no médio prazo, capaz de beneficiar toda a sociedade brasileira.” •
Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ouro verde’
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