Economia

Os mitos por trás do megavalor de mercado da Apple

A apropriação de tecnologias do Estado e a sonegação ajudaram a empresa a alcançar o valor de mercado inédito de 1 trilhão de dólares

Notícia veio acompanhada das louvações à importância do livre mercado e ao empreendedorismo de Steve Jobs
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Na quinta-feira 2 a Apple anunciou ter atingido o valor de mercado de 1 trilhão de dólares, inédito entre empresas privadas. Valor de mercado é o resultado da multiplicação do preço da ação de uma empresa na bolsa pelo total de ações por ela emitidas.

O registro da notícia veio acompanhado das louvações habituais da mídia à importância do livre mercado e ao empreendedorismo individual personificados em Steve Jobs, o fundador da companhia morto em 2011.

Jobs e a Apple têm méritos indiscutíveis, mas o desconhecimento de aspectos fundamentais do percurso da empresa, revelados por estudos de pesquisadores renomados, leva muitos a pensar que os excelentes resultados são feito exclusivo da iniciativa pessoal e da inovação tecnológica pioneiras de empresas particulares heroicas, quando a história real está muito longe disso.

“Embora os produtos devam seu belo design e integração ágil ao gênio de Steve Jobs e sua grande equipe, as tecnologias básicas incorporadas aos produtos inovadores da Apple são na verdade resultado de décadas de apoio do governo federal à inovação.

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Praticamente toda a tecnologia de ponta encontrada no iPod, iPhone e iPad é uma conquista muitas vezes esquecida e ignorada dos esforços de pesquisa e apoio financeiro do governo e das Forças Armadas”, dispara a economista PhD Mariana Mazzucato.

Titular da prestigiosa cadeira RM Phillips de Economia da Inovação no Departamento de pesquisa em Ciência Política da Universidade de Sussex, no Reino Unido, ela presta consultoria para o governo britânico sobre crescimento estimulado por inovação.

Autora da obra referencial “O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. o setor privado”, Mazzucato demole o mito neoliberal estadunidense expresso por Jobs em discurso famoso na Universidade de Stanford, em 2005, quando incitou os formandos a serem inovadores “indo atrás do que vocês amam” e “continuando loucos”.

O discurso, diz a pesquisadora, que foi citado como epítome da cultura da economia do “conhecimento”, enfatiza a parte “tola” da inovação e cria um mito em relação à origem do sucesso da Apple.

Um elemento chave para a desconstrução do discurso de Jobs foi a percepção, por parte do analista Horace Schmidt, de que a empresa era a antepenúltima em investimento em pesquisa e desenvolvimento na comparação com treze concorrentes do setor incluídas Microsoft, Google, Samsung, Sony e Amazon, segundo dados de 2012 referentes a parcela do faturamento destinada à P&D.

Como explicar uma empresa tão inovadora com parcos recursos empregados em inovação em relação às sua competidoras? A explicação desse “mistério” identificado por Schmidt é detalhada por Mazzucato no gráfico “Origem dos produtos populares da Apple”, um dos altos do livro.

A Apple, como numerosas empresas privadas estadunidenses, simplesmente apropriou-se de tecnologia desenvolvida pelo Estado financiada com dinheiro dos impostos execrados pelos homens de negócios.

A origem das tecnologias cruciais dos produtos iPod Touch, iPhone e iPad, da Apple, é a seguinte, de acordo com o gráfico mencionado acima:

  • Memória RAM – DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos EUA)

  • Baterias de lítio – DoE (Departamento de Energia dos EUA)

  • Compressão de sinal – Laboratório de Pesquisas do Exército dos Estados Unidos

  • Tela de cristal líquido – NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos), NSF (Fundação Nacional de Ciências dos EUA), DoD (Departamento de Defesa dos EUA)

  • Microdisco rígido – DoE/DARPA

  • Microprocessador – DARPA

  • Tecnologia móvel – Exército dos Estados Unidos

  • HTTP/HTML – CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, Genebra)

O governo dos Estados Unidos presta involuntariamente outro tipo de “ajuda”, digamos, à Apple ao deixar de recolher impostos sobre grande parte dos lucros bilionários obtidas pela companhia, denuncia o pesquisador Gabriel Zucman, professor assistente da London School of Economics, no livro A Riqueza oculta das nações: Inquérito sobre os paraísos fiscais. “Trata-se provavelmente do melhor livro já escrito sobre paraísos fiscais e o que nós podemos fazer sobre eles”, destaca no prefácio o famoso economista Thomas Piketty, autor do estudo mais importante sobre a desigualdade de renda no mundo.

“Nos Estados Unidos, o Congresso revelou que uma das maiores empresas do planeta, a Apple, sonegou dezenas de bilhões de dólares em impostos por meio da manipulação do local de origem dos seus lucros”, chama atenção Zucman.

“Não há nada menos arriscado, antes o contrário, do que manipular os preços de patentes, logotipos, marcas ou algoritmos, porque o valor desses ativos é intrinsecamente difícil de estabelecer. É por isso que os gigantes da evasão fiscal são empresas da nova economia: Google, Apple e Microsoft. A taxação das companhias diminui na mesma medida que o capital imaterial ganha importância”, destaca Zucman.

Talvez a Apple devesse assinalar a conquista do valor de mercado inédito com a inauguração de uma placa na fachada da sua sede em Cupertino, na Califórnia, com agradecimentos ao Estado americano pela inestimável ajuda ao seu desempenho espetacular.

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