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Operação Tabajara

Tardio e complexo, o plano do governo para segurar os preços dos combustíveis tem tudo para dar errado

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Imagem: Alan Santos/PR e Flávio Emanuel/Agência
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A última e mais arriscada cartada eleitoral do governo, de buscar não só a contenção dos aumentos dos preços de combustíveis, mas a sua redução para o consumidor por meio da distribuição de ­vouchers a públicos específicos, aconteceu na terça-feira 21, pouco depois do anúncio de novas elevações do diesel e da gasolina. Se a jogada fracassar, a resposta pronta e ensaiada nos últimos dias por Jair ­Bolsonaro e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, é de que a culpa é da ­Petrobras, na mesma toada com que a mídia e o Ministério ­Público tentaram destruir a reputação da estatal no chamado “petrolão”.

Só o fundamentalismo de mercado e uma total falta de empatia com os mais vulneráveis explica o motivo pelo qual o governo, com lucros e dividendos abundantes na Petrobras, arrecadação em alta e eleições no horizonte, demorou tanto tempo para atenuar o peso dos reajustes dos combustíveis nos orçamentos das famílias e das empresas. Os vouchers para caminhoneiros e taxistas e outras políticas compensatórias, como um auxílio-gás para os mais pobres, são utilizadas em mais de 60 países, com frequência combinados à redução da tributação, para enfrentar a inflação. Na lenta adaptação à realidade, o governo propôs, por meio do ministro Paulo Guedes, um repasse irrisório de 400 reais, ridicularizado por caminhoneiros indignados, e auxílio para a compra de gás de cozinha.

A três meses da eleição presidencial, o governo pretende uma ampla intervenção na Petrobras e no mercado de derivados, operação complexa considerada de alto risco por ao menos três motivos, segundo fontes da empresa. Em primeiro lugar, a estatal não é mais monopolista. Cerca de 15% do mercado de diesel é de produto importado e 15% de refino privado, isto é, 30% do suprimento está nas mãos de terceiros. Isso significa dizer que, se a Petrobras não operar na paridade de preços de importação, faltará abastecimento para 30% do mercado. Operar na paridade significa continuar com aumentos imediatos e contínuos do diesel a cada elevação do petróleo no mercado internacional e diante de toda alta do dólar. Esse quadro, cabe acrescentar, mostra que não é tão simples quanto possa parecer a eliminação do PPI, como propõe a oposição, pois parte significativa do abastecimento interno foi retirada do controle da companhia e do Estado. Uma solução típica do chamado mercado seria a própria petroleira arcar com o prejuízo, mas há complicações consideráveis. Esse caminho implica obter diesel em uma operação complexa que inclui comprar no mercado spot ou físico, bancar o prejuízo e distribuir. Considere-se também que a Petrobras sob Bolsonaro vendeu várias refinarias, algumas delas não foram concluídas e a capacidade de refino não é mais a mesma.

O PROBLEMA DO DIESEL É UMA SITUAÇÃO DE RESTRIÇÃO INDUSTRIAL, CRÍTICA E PERIGOSA

A segunda dificuldade, de acordo com as mesmas fontes, é que as decisões de aumentos de preço que têm levado Bolsonaro e Lira a acessos de raiva exigem processos colegiados sob a atual sistemática de governança, na qual processos decisórios e controles são necessariamente compartilhados. Para segurar os preços a partir de decisões individuais, o governo teria de mudar por completo a governança, o que requer tempo e esbarra na Lei das Estatais e em normas do Tribunal de Contas da União e do Tribunal Superior Eleitoral, pois dar subsídio em período de eleição é crime. Retroceder a sistemática colegiada violaria também a Lei das S.A., que obriga os administradores a cumprir a legislação para atingir os objetivos da ­empresa ­estabelecidos pelo estatuto, isto é, obter lucro. A operação iniciada pelo governo tem, portanto, alto risco do ponto de vista jurídico. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, confirmou que o Executivo cogita alterar a Lei das Estatais por meio de uma medida provisória.

A terceira dificuldade para concretizar as pretensões governamentais é a existência de uma restrição estrutural à oferta de diesel. O mercado europeu, diante da redução do fornecimento de gás pela Rússia, fez a sua substituição por diesel, em pequena escala, mas o suficiente para um aumento perceptível da demanda permanente por este combustível. Além disso, os estoques reguladores dos EUA sofreram baixa significativa por conta da guerra na Ucrânia. Pesa ainda a situação complicada da indústria mundial de refino, em consequência do investimento insuficiente, inclusive no Brasil, e da existência de poucos países com um parque de refinarias à altura das necessidades. Outro fator de pressão sobre os preços do diesel é a aproximação da safrinha, com aumento da demanda deste combustível para o transporte de grãos. O período coincidirá com os meses em que a produção de diesel no Caribe e no sul dos Estados Unidos, onde se localizam as principais refinarias, costuma diminuir em consequência de tufões e furacões.

O conjunto de condições atuais indica que o problema do diesel é substancial e sem perspectiva de solução no curto prazo. Muito mais do que um contratempo de mercado, o problema é visto dentro da própria Petrobras como “uma situação de restrição industrial, crítica e perigosa”. “Deste governo, nada se espera, mas também não vi nenhuma proposta séria da esquerda, que parece não ter coragem de enfrentar as petroleiras”, dispara o engenheiro aposentado da Petrobras e ex-consultor do Congresso Paulo Cesar Ribeiro Lima. “Em vez de mudar o ­modelo tributário”, prossegue, “ela fica só batendo na Petrobras com o PPI, que, apesar de existir formalmente, nem tem sido aplicado como na época do Pedro Parente. Assim como a direita, parece ter prazer em bater só na companhia. É mais fácil achar uma ‘Geni’ do que resolver o real problema tributário”, ressalta Lima. Na prática, a Petrobras tem recebido abaixo do preço do mercado internacional, mas o problema é que a população não pode pagar. “Parte do preço tem que ser pago com o dinheirão que as petroleiras estão ganhando no pré-sal. É muito simples. Elas não querem refinar no Brasil, querem é exportar o petróleo bruto. ­Trata-se, portanto, de tributar as exportações do óleo bruto, o que tem a vantagem de estimular o refino interno.”

Os detentores de ações na Bolsa de Nova York estão satisfeitos. A venda a preços aviltados da refinaria Lubnor, em Fortaleza, foi outro crime – Imagem: Juarez Cavalcanti/Agência Petrobras e Spencer Platt/Getty Images/AFP

Dinheiro não falta para subsidiar temporariamente os combustíveis. Em 2021, dos 101,3 bilhões de reais pagos em dividendos pela companhia, 45 bilhões foram parar no bolso dos acionistas estrangeiros. No primeiro trimestre deste ano, os dividendos totalizaram 48,5 bilhões. Além disso, a estatal vendeu, sem licitação, 263 bilhões de reais de seus ativos. Lima concorda com a taxação também dos lucros das petroleiras, mas ressalva que isso implica prejudicar mais a Petrobras do que a Shell, por exemplo, porque se tributará uma empresa que ainda tem refinarias e vende derivados produzidos no Brasil. “Eu acho que o mais importante é você taxar a exportação do petróleo bruto, porque aí você pega a raiz do problema”, reforça.

A Petrobras, acrescenta Lima, tem muito maior transparência que a Shell, a Petróleo Ltda., a Total e a CNPC, que são sociedades limitadas de origem estrangeira. Com a Lei 13.586, de 2017, a Shell praticamente não paga tributos federais. “O Brasil é um verdadeiro paraíso fiscal para as empresas exportadoras de petróleo bruto. Não há interesse em construir novas refinarias, novos gasodutos no pré-sal, novas unidades de processamento de gás natural, só se quer exportar petróleo, por falha na legislação. Punir quem construiu o parque nacional de refino é um equívoco.” A produção de gás do pré-sal aumenta, mas a oferta interna diminui. O Brasil é dependente da importação de derivados e de GNL (gás natural liquefeito). Há risco de desabastecimento. “Basta um decreto do presidente da República para arrecadar 73 bilhões de ­reais em imposto de exportação sobre o petróleo bruto”, propõe Lima.

CERCA DE 60 PAÍSES ADOTAM POLÍTICAS COMPENSATÓRIAS E REDUÇÕES TRIBUTÁRIAS PARA ENFRENTAR A CRISE

Segundo o ministro de Minas e Energia, Alberto Sachsida, a Petrobras não pode impedir aumentos dos preços dos derivados. A situação de empresa com capital controlado pelo governo que se torna quase imune a esse controle, por submissão aos interesses do mercado, “não tem precedente no mundo”, afirma Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP. O objetivo de qualquer empresa estatal, diz, seja no Brasil, nos Estados Unidos ou na China, é perseguir as finalidades para as quais foi criada, que são executar determinada política pública e atender ao interesse público que justificou sua instituição. “O que ocorre atualmente no Brasil é um desvio de finalidade de uma empresa estatal, capturada totalmente por interesses privados de mercado.” A atual forma de distribuição de dividendos para os acionistas “é uma anomalia sem qualquer fundamento legal”, dispara Bercovici. É dever da Petrobras, afirma, estabelecer política de dividendos que limite sua distribuição ao montante mínimo legal de 25%, com respaldo legal na lei que estabelece que as sociedades de economia mista deverão elaborar política de distribuição de dividendos, à luz do interesse público que justificou a sua criação.

O objetivo essencial de uma sociedade­ de economia mista como a Petrobras, acrescenta Bercovici, não é a obtenção de lucro, mas a implementação de políticas públicas. A legitimidade da ação do Estado como empresário, prevista na Constituição, é a produção de bens e serviços que não podem ser obtidos de forma eficiente e justa no regime da exploração econômica privada. A empresa estatal Petrobras não tem apenas finalidades microeconômicas, ou seja, estritamente “empresariais”, mas tem essencialmente objetivos macroeconômicos a atingir, como instrumento da atuação econômica direta do Estado.

O tempo corre contra Bolsonaro. Na quarta-feira 22, 11 estados entraram com ação no STF contra a lei que fixou a incidência única de ICMS sobre combustíveis. O nome de Caio Paes de Andrade, presidente indicado da Petrobras, deverá ser aprovado nos próximos dias e calcula-se que precisará de um mês para tomar pé da situação e mudar o conselho de administração e a diretoria. Restarão 60 dias para avançar no controle dos preços nas várias frentes descritas acima, missão entre o impossível e o improvável. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Operação Tabajara”

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