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O xadrez de Haddad

Recuperar receitas e serenar os ânimos do mercado fazem parte dos planos do ministro da Fazenda

Aval presidencial. Haddad anunciou ao ministro Massera a intenção de retomar o crédito para a exportação à Argentina. Já a decisão de acabar ou não com a renúncia fiscal eleitoreira que baixou artificialmente o preço da gasolina caberá a Lula - Imagem: Ricardo Stuckert e Marcello Casal Jr./ABR
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Obcecado com o equilíbrio perpétuo das contas governamentais sem levar em conta a diversidade de situações dos países e os diferentes contextos históricos, o chamado mercado recebeu com tranquilidade, ao que tudo indica, as primeiras medidas econômicas anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na quinta-feira 12. O governo parece ter feito o que era possível nos marcos do rígido controle imposto pelas instituições financeiras e pelo Banco Central, sem renegar a missão estabelecida por Lula, que prometeu colocar os pobres no Orçamento.

Haddad apresentou à mídia um conjunto de medidas fiscais centradas na recuperação de receitas que, nas contas do ministro, deverão levar o resultado fiscal de 2023 a um déficit entre 0,5% e 1% ou, num cenário otimista, gerar um pequeno superávit. Essas medidas incluem a extinção do voto de desempate no Carf a favor dos contribuintes e a redução do estoque crescente de processos administrativos nesse conselho, um novo programa de renegociação de dívidas tributárias, o Litígio Zero, a revisão de contratos e programas e a reoneração dos combustíveis.

“Com algumas semanas de governo, é muito cedo para dizer se Haddad será ou não um bom ministro da Fazenda, mas acho que as primeiras medidas fiscais que ele tomou, de elevação das receitas e de redução dos gastos, são basicamente positivas”, destaca o economista Paulo Nogueira Batista Jr., colunista de CartaCapital, que não considerou o pacote “ortodoxo demais”, segundo críticas surgidas no próprio PT. Isso porque, pelas contas do governo, que não foram contestadas até agora, essas medidas resultariam, junto à PEC da Transição, na manutenção das contas do governo mais ou menos nos níveis em que elas estavam em 2022.

A política fiscal poderia ser mais expansiva, o que ajudaria na recuperação da economia, mas isso é o tipo de coisa que é melhor fazer do que anunciar, sublinha o economista. Um ponto de destaque no conjunto de medidas, prossegue, são as mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, um tribunal administrativo no âmbito da Receita que foi desvirtuado no período Bolsonaro. Restaurou-se o voto de ­desempate em favor da União, que poderá recorrer à Justiça em caso de derrota administrativa. Antes, quando perdia no âmbito do Carf, a União ficava impossibilitada de recorrer. Havia uma assimetria, pois os contribuintes podiam, sim, recorrer à Justiça em caso de derrota nessa esfera. Como o Carf é paritário, tem três integrantes do setor privado e três da Receita, o que acontecia, quando se estabeleceu que o desempate favorecia o contribuinte, é que a União passou a perder a maior parte das causas que vinham a esse tribunal, com prejuízos para o Erário.

O Brasil tentará retomar o comércio com a Argentina, após Bolsonaro dinamitar relações com o país vizinho

Depois das medidas anunciadas pelo ministro Haddad, as grandes empresas que se beneficiavam da situação anterior e seus advogados tributaristas estão reclamando das mudanças no Carf, estabelecidas por Medida Provisória pelo governo. “O que é isso? Bom sinal? Ou será um ótimo sinal?”, indaga ­Nogueira Batista Jr. O valor do estoque de processos administrativos no Carf, que girava em torno de 600 bilhões de ­reais entre 2015 e 2019, saltou para mais de 1 trilhão em 2022, inflado pelo voto de desempate dado pelo representante dos contribuintes em atraso.

Outros economistas manifestaram-se na mesma direção. “Vejo as medidas de Haddad com bons olhos. É o início de um trabalho difícil”, diz o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga. “As medidas buscam dar uma espécie de satisfação ao mercado, ou seja, expressar que o governo não é irresponsável, está preocupado com o equilíbrio fiscal, quer reduzir o déficit primário”, emenda José Luís Oreiro, da Universidade de Brasília.

Atuar no sentido de reduzir a preocupação do mercado é reconhecer que ele não é uma instância técnica, mas um poder, sobretudo no que se refere aos mercados financeiros. Tentativas de impedir o avanço das políticas públicas de investimento são uma forma de manter a economia sob as diretrizes dos financistas. A justificativa é de que só o mercado conduz à estabilidade e ao crescimento equilibrado, uma promessa quebrada todos os dias faz décadas, com desastres financeiros, ambientais e humanitários provocados por empresas privadas sem regulação do Estado.

Além do empenho em recuperar receitas capazes de contrabalançar os 220 bilhões de déficit deixados pelo governo anterior, o Ministério da Fazenda tem desafios de curto prazo: a definição do aumento do salário mínimo, a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até 5 mil reais e o fim da renúncia fiscal sobre a gasolina, assuntos que têm gerado interpretações errôneas. Segundo fontes do governo e do meio jurídico, a situação dessas pendências pode ser resumida da seguinte forma:

Fisco. Isentar de Imposto de Renda quem recebe menos de 5 mil reais depende da segunda etapa da reforma tributária, a ser discutida no segundo semestre – Imagem: Miguel Schincariol/AFP e Marcelo Camargo/ABR

Salário mínimo. O gasto foi determinado pela PEC da Transição, mas o que estava separado para a elevação dos atuais 1.212 reais para 1.320 reais foi consumido, porque a fila da Previdência andou, em 2022, com uma velocidade muito superior ao crescimento vegetativo histórico, em decorrência de uma manobra eleitoral do governo Bolsonaro. Por lei, ainda que o governo tenha arrecadação maior, não pode criar uma despesa nova, a não ser que abra espaço cortando outra despesa. Um aumento superior àquele determinado pelo governo anterior, que eleva o salário para 1.302 reais, só é possível se até maio o governo tiver sucesso em retirar despesas de outros lugares, com redução das fraudes no Auxílio Brasil, hoje Bolsa Família, fraudes na Previdência e outros contratos que podem ter problemas. A restrição é, portanto, legal. A única alternativa, caso não se consiga cortar despesas, é uma Proposta de Emenda Constitucional.

Imposto de Renda. A primeira dificuldade para colocar em prática a promessa de Lula, de isentar do IR quem ganha até 5 mil reais por mês, é que medidas específicas como a definição de novas alíquotas para cobrar de quem ganha entre 50 mil reais e 100 mil reais, sem tratar da tributação sobre lucros e dividendos, só aprofundará a chamada “pejotização”, isto é, a constituição de pessoas jurídicas apenas para diminuir o pagamento de impostos. A questão insere-se, portanto, na discussão da reforma tributária, mas só na segunda etapa, que tratará da taxação sobre lucros e dividendos. A primeira etapa, neste semestre, tratará dos impostos indiretos.

Desoneração dos combustíveis. A renúncia fiscal, outra medida eleitoreira de Bolsonaro, prosseguirá por um ano para o diesel e o GLP, mas a da gasolina termina em fevereiro e depende de prorrogação. A questão é política e passa pela mudança da presidência da Petrobras. Na terça-feira 24, a empresa, ainda sob comando bolsonarista, aumentou o preço da gasolina nas refinarias em 7,5%, de 3,08 para 3,31 reais.

Um passo importante para a reconstrução do País na sua dimensão internacional foi dado na Argentina, na primeira viagem internacional de Lula, com a formação de um grupo de trabalho com prazo de quatro anos para estudar a possibilidade de criação de uma moeda comum para uso exclusivo em transações comerciais. Presente nos marcos de Bretton Woods, que regem as relações econômicas entre os países, e também na moeda Direitos Especiais de Saque, do FMI, essa perspectiva gerou confusão a partir de uma notícia do jornal Financial Times, segundo a qual o governo brasileiro teria proposto um sistema semelhante ao euro na América Latina. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI e Mohamed El-Erian, presidente do Queen’s College, em ­Cambridge, estão entre os que condenaram erroneamente, no exterior e no ­País, a proposta do governo com base apenas no que foi publicado pelo jornal britânico.

A China forneceu linhas de crédito em renminbi para que a Argentina importasse das empresas chinesas

A ação do Brasil consiste somente na tentativa de retomar o espaço que tinha no comércio com a Argentina até a dinamitação das pontes com o país por Bolsonaro. A China ocupou o lugar do Brasil, que regrediu para níveis de comércio com os hermanos aos patamares pré-Mercosul. O país vizinho não tem moeda forte para importar do resto do mundo e a China forneceu linhas de crédito em renminbi para que a Argentina importasse das empresas chinesas.

O governo buscará de imediato uma retomada do crédito à exportação, abrindo a possibilidade de que qualquer banco, público ou privado, possa financiar a exportação de produtos brasileiros. O exportador pedirá o crédito para exportação, o banco financiará em reais e pagará diretamente ao exportador brasileiro. Isso evitará que os reais caiam nas mãos da Argentina e ela os utilize para comprar dólar. O financiamento será, portanto, para pagar exclusivamente a importação de produtos brasileiros.

O banco, para não ficar à mercê do importador argentino, poderá acessar o Fundo Garantidor de Exportação e terá, portanto, o risco soberano Brasil, que é praticamente zero. O Fundo Garantidor corre o risco Argentina, mas, devido à possibilidade de conversibilidade caso ocorra uma maxidesvalorização do peso ou um default do país, o Brasil exigirá da Argentina um esforço colateral em garantias reais, que podem incluir petróleo, gás, soja, trigo ou outro ativo que tenha preço no mercado internacional.

Vários economistas consideram que, além da condução da política econômica com o objetivo de abrandar as expectativas negativas do mercado, o governo deverá avançar em definições estratégicas, a começar pelo estabelecimento de um novo arcabouço fiscal. Outro ponto é usar os bancos públicos para tentar contornar a restrição fiscal. Isso requer mobilizar o BNDES, a ser capitalizado pelo Tesouro, o que deverá gerar protestos, como costuma ocorrer no Brasil. Uma alternativa engenhosa seria atrair ao menos os grandes bancos para fazerem programas com um fundo de garantias de modo a participarem dos programas definidos pelo governo.

Outro item importante, ressaltam esses economistas, é recuperar a ideia de planejamento indicativo e fazer com que o Ministério do Planejamento estruture programas de investimento na transição energética. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O xadrez de Haddad “

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