Economia
O petróleo é do passado
Com a Petrobras empenhada na busca de energias limpas, o Brasil pode se tornar uma potência global de alternativas renováveis


Em meio à tempestade de bombas orçamentárias do governo Bolsonaro, com setores inteiros do Estado arrasados e sem dinheiro nem para pagar as despesas de dezembro, chamam atenção os dividendos exuberantes da Petrobras, estimados em 180 bilhões de reais, pagos neste ano aos acionistas, a maior parte deles estrangeiros, que negociam na Bolsa de Nova York. A cifra representa metade do valor de mercado da companhia, segundo analistas. Uma aberração que era, porém, o objetivo da grande transformação operada pelos governos Temer e Bolsonaro.
Eles sempre tiveram em mente a conversão de uma empresa que buscava a autossuficiência do País em derivados do petróleo em uma mera caixa registradora de distribuição de lucros do Pré-sal aos investidores. O desmonte da estrutura de refino e distribuição, realizado para atingir aquela meta, teve como um dos resultados a inviabilização de qualquer política de preços de combustíveis a não ser a da sua dolarização. Acrescente-se que, além de ter sido desmantelada em benefício de poucos, a Petrobras quase não investiu em energias renováveis, na contramão da estratégia perseguida pelas maiores empresas do setor no resto do mundo.
Mesmo com a estrutura produtiva desfigurada e a função social deturpada, a Petrobras reúne condições, porém, de se tornar uma empresa de energia com ênfase em alternativas limpas, ao mesmo tempo que retoma a busca da autossuficiência na produção interna de combustíveis derivados do petróleo, que continuarão indispensáveis no mundo nas próximas duas décadas. Além de contar com uma equipe técnica de excelência mundial, a estatal tem grande experiência em exploração de petróleo e gás em águas ultraprofundas, uma tecnologia que é aproveitável, ao menos em parte, para a expansão da energia eólica offshore, ou marítima, com torres de grande altitude. Conta ainda com imensos mananciais de gás associado ao petróleo, considerado o combustível ideal para se fazer a transição energética em vários setores econômicos.
Mesmo sem a configuração original, a Petrobras tem enorme potencial para ser o carro-chefe da transição energética
Acrescente-se aos requisitos acima o contexto altamente favorável para a transição rumo a energias limpas. Além das condições privilegiadas do País em termos de recursos naturais e alternativas renováveis, há a conjugação do mandato de Lula, comprometido com a causa ambiental e a recuperação econômica do País, com a exigência internacional cada vez maior por produtos agropecuários e florestais obtidos sem agravamento do problema climático. O exemplo mais recente é a aprovação, na terça-feira 6, pela União Europeia, da proibição da entrada nos países do bloco de commodities produzidas em áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020. A medida deve facilitar o cumprimento da meta anunciada pelo presidente Lula, de zerar o desmatamento no País até 2030.
A combinação de condições favoráveis detalhada acima pode reverter em um aumento dos financiamentos para o País, prevê o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, colunista e consultor editorial de CartaCapital. “O Brasil tem condições de alcançar uma recuperação econômica importante a partir de uma grande ênfase na transição energética, associada à questão do meio ambiente, e a Petrobras deve desempenhar um papel essencial”, sublinha Belluzzo. “É possível haver uma fusão da empresa com a Eletrobras, para a criação de uma gigante da energia, não focada apenas na exploração de combustíveis fósseis.”
Com isso, o País terá enorme protagonismo, prevê Belluzzo. “Um programa energético e de proteção ao meio ambiente de grande valor vai nos valer, certamente, a compreensão e a aprovação pelo resto do mundo.” O Brasil terá acesso mais fácil ao financiamento, pois há um público significativo, entre instituições financeiras e investidores, disposto a participar do processo com os green bonds, títulos de dívida que só podem ser usados para financiar investimentos considerados sustentáveis.
O gás extraído com o petróleo substitui combustíveis mais sujos. Faltando um mês para terminar, a gestão Bolsonaro entregou à iniciativa privada a refinaria de Manaus – Imagem: André Motta de Souza/Agência Petrobras
Os dois elementos essenciais da equação climática, energética e econômica são a eleição de Lula e a Amazônia, como detalha Belluzzo: “É uma oportunidade enorme e nós temos uma vantagem, que é um presidente que conta com respeito e admiração internacionais muito grandes. Ele é um negociador, um homem disposto a conversar, tem acesso a todos os líderes mundiais, muito ao contrário do presidente atual. O nosso ativo Amazônia pode nos proporcionar vantagens muito importantes do ponto de vista do investimento internacional. Tenho certeza de que esse projeto está bem abrigado nas preocupações de Lula e isso nos dá um protagonismo internacional com vantagens econômicas significativas”.
A ênfase na transição energética associada à questão do meio ambiente é considerada por muitos como incontornável, dada a passagem do estado de urgência climática para o de emergência climática mundial, com a sucessão de tragédias que afetam em maior escala as populações mais pobres. A junção de preservação de biomas, transição energética rumo a energias limpas e enorme demanda mundial pela proteção da Amazônia, combinada ao aproveitamento da diversidade biológica desse ecossistema voltada para as populações locais, e ainda uma situação provavelmente mais favorável à captação externa de recursos, tem força suficiente para ser uma das grandes marcas do governo Lula e talvez encaminhar o que já foi descrito como a transformação do Brasil em uma potência global de energia renovável, associada à sustentabilidade ambiental.
Subestimar as proporções do desafio seria, porém, enganoso. “A Petrobras é uma empresa de ponta e continua sendo muito importante na área de petróleo e gás, mas ela praticamente abdicou de outras fontes de energia”, chama atenção Maurício Tolmasquim, coordenador-executivo do grupo técnico de Minas e Energia da equipe de transição de Lula. Segundo Tolmasquim, que é professor titular da Coppe/UFRJ e presidiu a Empresa de Pesquisa Energética, a Petrobras hoje “tem pouquíssima atenção para a questão da transição energética” e a ideia é aumentar essa área no novo governo, inclusive por ser uma exigência atual dos investidores internacionais e dos financiadores, que só aceitam colocar recursos “em empresas que estejam empenhadas na luta contra a mudança climática”.
As empreiteiras se articulam para pedir ao governo Lula a revisão de acordos da Operação Lava Jato – Imagem: Ministério do Planejamento/PAC
Hoje, o Brasil é autossuficiente em petróleo, inclusive é exportador de óleo bruto, sublinha o especialista. Somos dependentes, porém, da importação de derivados, como a gasolina, o diesel e outros. Isso torna o País vulnerável a choques externos, porque, nessas situações, aumenta o preço desses combustíveis e, ao importá-los para garantir o suprimento, isso acaba elevando o desembolso do consumidor.
A solução para ter uma autossuficiência em derivados, aumentar a autonomia e diminuir a vulnerabilidade, é elevar a capacidade de refino. Essa ampliação não necessariamente significa construir novas refinarias. “O primeiro passo pode ser a expansão das refinarias existentes, ou, talvez, a conclusão de algumas unidades com obras iniciadas.”
A expansão da capacidade de refino precisa ser feita com novas tecnologias, a exemplo das biorrefinarias, com menor pegada de carbono. “Refinarias são só um exemplo, pois existe uma série de mecanismos como o uso, por exemplo, do hidrogênio verde nos processos de refino. Há várias tecnologias novas que permitem produzir os derivados de petróleo com menor emissão de gases de efeito estufa na atmosfera”, ressalta Tolmasquim. “É claro que essa busca pela autossuficiência no refino para reduzir a vulnerabilidade do País tem de estar alinhada com a proposta de que a Petrobras se transforme em uma empresa de energia, e que, nesse processo, ela leve em consideração a transição energética, inclusive estudando, como várias empresas internacionais fizeram, a possibilidade de ter uma meta de emissões líquidas zero de carbono no futuro.”
Isso é possível, acrescenta o especialista, escolhendo tecnologias mais limpas, que gerem menos gases de efeito estufa. A transição também precisa ser compatibilizada com a questão de custos. “Algumas dessas tecnologias podem ser eventualmente mais caras, mas é muito importante que seja levada em consideração essa questão da transição energética e da redução da emissão de carbono, uma das metas que foram anunciadas durante a campanha eleitoral e que o País quer buscar”, destaca Tolmasquim.
A abundância de gás extraído com o petróleo facilita a transição energética, mas isso depende do setor. O gás não é um mecanismo de descarbonização no setor elétrico, no qual grande parte da energia já é renovável. No restante da economia, contudo, ele pode ser um vetor importante de descarbonização ao substituir combustíveis mais sujos, como o carvão ou o óleo combustível, que os setores industriais são obrigados a usar para gerar calor em vários de seus processos fabris. “Nesse sentido, o gás é realmente um elemento importante na transição energética.”
O Brasil tem plena condição de produzir hidrogênio verde a um preço muito competitivo no mercado global
Parte relevante no percurso da transição energética, ressalta Tolmasquim, é a ampliação do uso de usinas eólicas offshore, uma tendência mundial. Vários países estão investindo nessa tecnologia, porque a construção de geradores no mar permite usar torres mais altas e pás maiores. Quanto maior é a altura, mais há geração de energia. Hoje foi atingido um certo limite, em terra, para aumentar a altura dos velhos geradores, porque é impossível transportar por rodovias as pás imensas e outros equipamentos de grandes dimensões para a construção das offshore. Na construção das eólicas oceânicas, esse transporte é feito por navios.
“O Brasil tem a vantagem de possuir uma costa marítima muito grande, uma tradição de produção de eólica em terra e, principalmente, tem em sua indústria petrolífera a experiência de fazer exploração offshore, que pode ser útil para expandir as eólicas marítimas”, destaca o especialista. Tanto que as grandes empresas de petróleo internacionais que estão no Brasil estudam projetos e analisam a possibilidade de investir nessa alternativa de energia limpa. “A Shell, a Equinor e a Total Energy estão com solicitação de licença ambiental para projetos nessa área. E é importante que a Petrobras também olhe com atenção essa tecnologia.”
O potencial da Petrobras na área de hidrogênio verde (confira a reportagem especial sobre o tema à pág. 39) é imenso e faz parte das perspectivas promissoras de conversão da empresa rumo a energias descarbonizadas. O custo de geração de energia elétrica no Brasil é muito baixo e há grande potencial de produzir, através da eletrólise da água, o hidrogênio verde a um custo também muito competitivo. Além disso, esse novo combustível pode ser importante no processo de redução da emissão de carbono durante o refino. “A Petrobras pode, eventualmente, na estratégia de descarbonização, estudar se investir em hidrogênio verde é uma alternativa interessante para ela”, ressalta Tolmasquim.
O encaminhamento da Petrobras para se tornar uma empresa de energia põe a companhia no mesmo rumo de gigantes do setor que investem cada vez mais em alternativas renováveis. “São várias, quase todas. Equinor, Shell, Total, as grandes empresas internacionais. Vimos, agora na Copa do Mundo, a Qatar Energy. É uma tendência mundial e é também uma exigência dos acionistas”, avalia o professor da Coppe/UFRJ.
É claro que a Petrobras, e qualquer outra empresa do setor, continuará a ter na exploração do petróleo o centro das suas atividades, enquanto vai se diversificando. A maior parte da receita e da lucratividade dessas empresas ainda está nos combustíveis fósseis. O que se discute não é abandonar a exploração e a produção de petróleo, isso não teria sentido. Durante muitos anos, ainda, o petróleo continuará sendo necessário e o Brasil estará bem posicionado nesse sentido. O importante é não cuidar apenas disso, mas também de outras energias.
A questão de fundo continua a ser a mesma: o País pretende controlar o petróleo e a Petrobras? – Imagem: Agência Petrobras
Uma referência para a transição energética é a aproximação do pico do consumo de petróleo no mundo, o chamado peak oil. Trata-se de uma data aproximada, definida por hipótese, em que a produção global de petróleo atingirá sua taxa máxima, após a qual diminuirá gradualmente. Uma busca sobre o assunto mostra que cada pesquisador tem uma estimativa diferente, mas as projeções apontam, em média, para um pico de produção, de cerca de 103,2 milhões de barris de combustíveis líquidos por dia, entre meados da década de 2020 e da década de 2030. O decréscimo do uso será lento. Mesmo após os carros elétricos se tornarem competitivos, não vão desaparecer aqueles movidos a derivados de petróleo. “Até mudar todos os processos produtivos leva tempo”, emenda Tolmasquim.
Enfrentar as consequências imediatas do desmantelamento da Petrobras é o primeiro desafio do novo governo. A redução da capacidade de processamento de petróleo, provocada pela venda de refinarias da empresa, aumenta o risco de escassez de óleo diesel, possibilidade monitorada pela equipe de transição, segundo o senador Jean Paul Prates, coordenador do subgrupo de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do grupo de trabalho de Minas e Energia. Cotado para assumir a presidência da empresa, Prates foi alvo nas últimas semanas de críticas por já ter defendido a privatização da empresa. Procurado para comentar o assunto, o senador não respondeu.
Outro legado negativo da atual gestão seria uma tentativa não convencional de encerrar a pendência com a fornecedora de sondas Sete Brasil, por meio do desembolso de 200 milhões de reais pela Petrobras, mas sem a participação de grandes instituições financeiras que fazem parte do projeto, segundo fontes da administração da empresa. Indagada a respeito do assunto, a Petrobras também não se manifestou.
A questão mais abrangente a envolver cada passo da estatal é a opção política do País em manter o controle nacional de reservas de petróleo e gás e da Petrobras em benefício da população, em especial da sua parcela mais vulnerável, que, após o auxílio-gás eleitoreiro do atual governo, agora se vê novamente obrigada a pagar o gás mais caro vendido pelas refinarias privatizadas. A última venda ao setor privado foi a da Refinaria Isaac Sabbá (Reman), de Manaus, realizada no começo deste mês.
“Temos de recuperar tudo. Esta é a nossa única saída”, alertou o ex-diretor da Petrobras Guilherme Estrella, que participou da equipe que fez a descoberta do Pré-sal, em depoimento ao portal Outras Palavras. Três meses depois do anúncio da existência do Pré-sal, disse Estrella, a Marinha dos EUA reativou a Quarta Frota para vigiar as águas do Atlântico Sul. “Os interesses estrangeiros antibrasileiros fizeram de tudo para se apossar dessa enorme riqueza. Deram o golpe de 2016, prenderam Lula, fraudaram as eleições de 2018. E entregaram tudo, inclusive a Petrobras.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O petróleo é do passado”
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