Política

Eleição fragmentada e interesses parciais

Veremos em outubro se o capital se tornou ou não uma força antissocial explícita e partiu para a violência social direta a seu favor

Bolsonaro foi aplaudido na CNI
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Existe uma clara tendência à fragmentação das forças políticas brasileiras representadas na atual eleição. De fato, parece que vivemos uma fragmentação forte, que significa muito e que, embora ponha em representação todas os setores e hipóteses de como o Brasil deva ser concebido e governado, faz com que, até o momento, nenhuma destas forças concretas se destaque como favorita, organizando também o polo oposicionista ao seu redor.

Esta condição, espécie de crise de legitimidade do quadro geral das forças existentes, é o resultado distorcido e politicamente problemático da ambígua prisão e retirada do processo eleitoral de Lula, que foi meio uma justiça real, inteiramente voltada para a criminalização da esquerda e apenas dela, meio uma ação política de setores do Judiciário, do partido conservador da Lava Jato.

Esta ação negativa, que altera fortemente o quadro das forças disponíveis existentes, é, no entanto, uma realidade política, e o apoio maciço popular a Lula terá de ganhar outro destino eleitoral, a ser disputado pelos candidatos de interesse popular.

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A grande derrota política da esquerda, e do PT, que marcou o desaparecimento da força cotidiana do partido na vida da política institucional nacional nos últimos dois anos, e acabou por levar à concentração do partido na política da hipervalorização da mística lulista como único modo de produzir poder, é um dos signos da grande degradação do espaço da política e da democracia entre nós, degradação que ajudou a levar setores conservadores, de outra maneira absolutamente inviáveis, ao poder nacional.

A crise e a ausência do planeta PT do sistema geral das forças políticas brasileiras, forçadas pelo impeachment e também por erros do partido, alterou completamente o quadro real das forças possíveis para o poder, em parte rumo à fragmentação atual. Em parte, pela ação política real de derrubada do último governo petista e da estigmatização da esquerda, abrindo espaço para uma nova e grave presença da extrema-direita na política pública do País, que estava ausente desde de 1984.

Após um ciclo histórico de prática democrática de eleições sucessivas por quase 30 anos, o princípio político e a desorganização do valor simbólico da política no mundo da vida realizada pela violência do processo de impeachment – que foi também uma violência contra o valor de uma eleição, simplesmente não reconhecida pela direita derrotada em 2014 – chegamos a esse quadro atual, interessado, de não integridade, em que três candidatos do campo democrático de compromisso popular, do campo do desenvolvimentismo com socialdemocracia, a favor de um projeto de nação consciente e comprometida, socialmente equilibrada, disputam sem definição o mesmo lugar político, com pouca discriminação e variação de votos, pouco favoritismo.

E o faz frente a um campo político hoje mais forte de direita, de tendência elitista e neoliberal, de prevalência dos valores do grande mercado financeiro global/local sobre os governos nacionais. Campo este cindido entre o candidato preferencial das elites endinheiradas, liberal autoritário, que, não por acaso, tem a maior desconfiança da vida popular, e o postulante abertamente autoritário e de descompromisso democrático real, que, paradoxalmente, tem apoio popular, ao mobilizar  simples e baixos impulsos para a política.

Nestes dois grandes campos, e seus cinco candidatos possíveis, estão as forças reais de proposição, entendimento e compromissos que devem chegar ao poder executivo no Brasil, em processo até o momento radicalmente indefinido.

De um lado, Geraldo Alckmin, muito combalido pela sucessão de medíocres governos tucanos, com sensível política de corrupção em São Paulo, disputa a vaga conservadora no segundo turno com Jair Bolsonaro, candidato do fascismo comum brasileiro, muito ignorante e antidemocrático, inimigo de qualquer compromisso social de Estado.

Esta rachadura profunda no campo conservador, o mesmo que disparou o projeto do impeachment e que chegou ao poder parcialmente por meio dele, mostra a aventura e a violência radical que se tornou a vida da política institucional no Brasil, mundo de múltiplas e distintas forças que não encontram integração, não sendo controladas nem mesmo pelos donos do poder, que, no entanto, certamente manipulam o quadro geral.

Do outro lado, dentre os candidatos viáveis eleitoralmente, temos o compromisso de política de retomada de interesses nacionais com integração social, de Ciro Gomes, que é, em linhas gerais, coincidente com o de Fernando Haddad, e, noutra via, uma imprecisa segunda opção de desenvolvimento alternativo, mas também de interesse coletivo, ético-ambiental, de Marina Silva.

Três candidatos do campo progressista, propositores de projeto de civilização de interesse, que disputarão a mesma vaga no segundo turno.

Ciro se apresenta com discurso forte e muito preparo e engajamento com questões concretas a respeito da crise brasileira. Haddad é homem culto e informado, de classe média cosmopolita, fez boa prefeitura em São Paulo – apesar do ódio antipetista patológico e tendente ao fascismo, mobilizado contra ele e o partido – e terá a carta coringa de poder, que não se sabe qual é a força e a extensão do pleno apoio de Lula.

Marina tem legitimidade moral, algum trânsito por entre elites, e algum modelo, mais desejante do que prático, de governo em busca de sustentabilidade e ética. Mas a má radicalização viril e violenta atual, promovida pela direita e sua política de ódio que teve resultados importantes, não parece ser favorável, neste momento, ao seu corpo e voz frágeis e postura sensata, mesmo que genérica.

Todavia, de fato, esta eleição será decidida com a resposta à questão de o quanto setores da riqueza nacional tidos por eles próprios por modernos estarão dispostos a bancar uma guinada à direita a qualquer custo, mesmo que absoluto, exclusivamente para a manutenção de seus interesses, de caráter econômico, e não social, diante do Estado.

E dado o histórico de ações dessa classe no processo do impeachment não temos nenhuma garantia de racionalidade e de pacto político civilizado que possa contar com eles.

Muito ao contrário. Banqueiros e empresários têm recebido e saudado abertamente Bolsonaro como um projeto legítimo para o País – lembrando a política do neoliberalismo autoritário de um Pinochet… –  revelando definitivamente a faceta antissocial, de tendência até mesmo ditatorial, do capital nacional, que se tornou rentista e que não estranha a degradação nacional evidente do governo Temer.

Neste ponto é a democracia que corre riscos pela força desproporcional e descompromissada da riqueza nacional. O capital vai radicalizar fortemente os próprios interesses parciais, como fez em 1964, e em 1989, com o apoio total à absurda eleição de Fernando Collor?

Se houver um segundo turno que reencene a cisão entre o campo neoliberal de interesse do dinheiro versus uma proposta de repactuação política para um desenvolvimento com integração social, Alckmin ou Bolsonaro versus Ciro ou Haddad, então veremos o quanto o capital se tornou ou não uma força antissocial explícita, abandonando as veleidades ideológicas liberais e partindo para a violência social direta a seu favor.

Esta é, me parece, a questão política maior e que representa forças sociais reais em jogo na eleição de 2018. 

* Psicanalista, professor da Universidade Federal de São Paulo, autor de “Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica” e “Michel Temer e o fascismo comum

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