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O massacre econômico

O RH do tráfico não enfrenta dificuldade para recrutar soldados em meio à ruína industrial e institucional do estado

O massacre econômico
O massacre econômico
Poucos sabem. O Complexo do Alemão abrigava fábricas e armazéns no início do século XX. O turismo não tem grande peso na arrecadação de ISS da capital – Imagem: Mauro Pimentel/AFP e iStockphoto
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A degradação econômica e institucional do Rio de Janeiro nos últimos 65 anos criou um terreno fértil para a supremacia do crime organizado. Em grande medida, a cidade transformou-se em uma usina de ocupações de baixa remuneração e escassas perspectivas, fornecendo mão de obra barata e abundante para o narcotráfico. Enquanto as causas estruturais dessa crise não forem enfrentadas, esse cenário permanecerá, alertam especialistas.

O processo de desindustrialização, acelerado pela fuga de empresas para estados mais organizados, criou enormes espaços vazios, frequentemente ocupados pelo tráfico ou por milícias, documenta o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP). Entre 2010 e 2022, o número de estabelecimentos abandonados na capital fluminense aumentou 125%, de 10.104 para 22.287, abrangendo sobretudo antigas instalações industriais e comerciais. Neste último ano, havia 479,3 mil “domicílios vagos e de uso ocasional” de todos os tipos na cidade. “Onde hoje é o Complexo do Alemão, existia, no começo do século XX, um conjunto de fábricas, armazéns e galpões”, observa o economista Paulo Gala, professor da FGV. A taxa de desemprego entre jovens no Rio de Janeiro atingiu 20,5%, a maior do País, segundo a Pnad. A média nacional é de 12%.

“A relação entre a degeneração econômica e a criação de condições para a proliferação do crime organizado é total”, afirma o geógrafo Elias Jabbour, presidente do Instituto Pereira Passos e professor da Uerj. Segundo ele, a solução para a criminalidade e a violência urbana depende de mudanças estruturais que, dentro do modelo neoliberal, dificilmente ocorrerão. Haverá ações de rastreamento de recursos e prisões de lideranças, mas o problema central permanecerá. Sem empregos industriais de qualidade, que paguem mais de dois salários mínimos, os moradores das favelas não têm mobilidade social nem perspectiva de futuro.

A participação fluminense no PIB nacional despencou 38,8% entre 1970 e 2017, revelam dados do IBGE

A solução passa pela recuperação da capacidade do Estado de realizar grandes intervenções no território, entrar nas favelas e transformá-las de fato, urbanizando as comunidades. “Isso geraria uma demanda tão grande que enfraqueceria os traficantes e as organizações criminosas”, destaca o presidente do IPP. Os instrumentos para criar essa demanda, fundamentais para enfrentar a crise de segurança, praticamente não existem. “Hoje, a política fiscal está criminalizada, a meta de inflação é irreal, a taxa de juros é de 15%, enquanto o tráfico de drogas não enfrenta problemas de liquidez. É muito dinheiro. A situação é extremamente desigual.”

O remédio para o Rio está atrelado a uma solução para o País, defende ­Jabbour. “O Brasil precisa atingir uma formação bruta de capital de 25% do PIB. Caso contrário, é o caos”, avalia. A Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) corresponde aos investimentos em bens duráveis que aumentam a capacidade produtiva, como máquinas, construção civil e propriedade intelectual, sendo um indicador do investimento em ativos usados para gerar outros bens e serviços. Em 2024, a FBCF alcançou apenas 17% do PIB, pouco acima dos 16,4% registrados em 2023.

Para atingir 25% de formação bruta de capital, é necessário manter um crescimento anual do PIB entre 5% e 7% por cinco a oito anos consecutivos, como mostram os exemplos de países avançados. O Brasil, exceto nos anos 1970, com o recorde histórico de 14% em 1973, não chega nem a um terço desse ritmo. Entre 1980 e 2024, a média anual ficou entre 2% e 3%. Um crescimento de 3% merece celebração após a devastação econômica nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, mas, historicamente, nenhuma nação se desenvolveu de forma sustentada com esse ritmo.

Vexame. Em 2023, o estado registrou o segundo pior Ideb no Ensino Médio do País – Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil

Segundo o economista Mauro Osório, professor da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e fundador do Instituto de Estudos sobre o Rio de Janeiro (Ierj), a crise estrutural do estado do Rio de Janeiro decorre da transferência da capital para Brasília, em 1960, sem compensações, da limitada tradição de planejamento regional e do predomínio de uma política clientelista. “Na Alemanha, quando a capital mudou de Bonn para Berlim, quase metade dos ministérios continuou em Bonn. Aqui, não houve compensação nem resistência local, não há um lobby regional”, diz Osório.

A falta de reflexão regional é substituída por “muito senso comum equivocado”, exemplifica Osório. Muitos acreditam, por exemplo, que o turismo tem grande peso econômico. “Fiz um levantamento e constatei que, na cidade do Rio, no mês do Carnaval, o ISS é menor do que na média dos outros meses. No total da receita do ISS, apenas 3% vêm do turismo, incluindo hotéis, agências de viagem e demais atividades do setor que pagam o Imposto Sobre Serviços”, relata o economista. Em contraste, 24% do ISS provêm do setor privado de saúde. A hegemonia política do clientelismo, iniciada no governo de Chagas Freitas, foi articulada pela Assembleia Legislativa e persiste até hoje, tornando-se uma espécie de máfia. “Não há um bom diagnóstico da cidade e do estado, daí a minha militância para criar uma reflexão regional”, destaca o professor.

No complexo de óleo e gás, 80% dos fornecedores estão fora do Rio, a maior área de produção. “A Petrobras, no governo atual, já contratou quase 50 navios de apoio, nenhum deles fabricado no estado. Há vários estaleiros, mas quase todos desestruturados, à exceção do de Angra, que faz mais módulos”, diz Osório. “Repare como não brigamos pelo Rio: quando a Embratur saiu daqui, ninguém reclamou.”

A Petrobras contratou 50 navios, mas nenhum será produzido no Rio, porque os estaleiros locais estão sucateados

Entre 1970, quando se consolidou a transferência da capital federal para Brasília, e 2017, o estado do Rio perdeu 38,8% de participação no PIB nacional, a maior queda entre todas as unidades federativas, aponta Osório, com base em dados do IBGE. O recuo reflete-se também no emprego formal: entre 1985 e 2023, o número de postos cresceu 62,3%, menos da metade do avanço de 167% no País, e o menor crescimento entre todas as unidades federativas, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho. No segundo trimestre de 2025, o desemprego atingiu 8,1%, ante 5,8% no Brasil. “Ou seja, o Rio de Janeiro virou o ‘lanterna’ do País em termos de dinamismo econômico”, dispara Osório.

O Rio de Janeiro, que ocupava a segunda posição em número de empregos formais na indústria em 1985, atrás apenas de São Paulo, caiu para a sexta colocação no ranking nacional em 2018, sendo ultrapassado por Minas Gerais, Paraná, Rio Grande­ do Sul e Santa Catarina. A estrutura pública e os indicadores sociais também se deterioraram. Em 2023, o estado registrou o segundo pior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para o Ensino Médio do País, e a taxa de mortalidade materna chegou a 74,4 óbitos a cada 100 mil nascimentos, bem acima da média nacional (50,94) e superior às das regiões Norte (69,4) e Nordeste (55,9).

De acordo com o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal na área da saúde, em 2016 nenhum município fluminense figurava entre os 20 melhores do Sudeste e Sul com mais de 100 mil habitantes. Entre os 20 piores, sete eram do Rio de Janeiro. Durante a pandemia de 2020, a população fluminense, fragilizada por décadas de enfraquecimento econômico e institucional, sofreu mais que o restante do País: em junho, a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes pela Covid–19 chegou a 34,8 no Rio, ante 18 em São Paulo, segundo dados do Ministério da Saúde. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”

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