Economia
O joio e o trigo
Os que enviam tratores a Brasília são o submundo. Há um setor mais esclarecido


A convocação de Bolsonaro para ruralistas enviarem tratores ao desfile de tanques de guerra comemorativo do 7 de Setembro sugere a existência de um bloco compacto do agronegócio adepto das manobras golpistas presidenciais, mas esta seria uma leitura equivocada. Pressionado pela recusa crescente de importadores em relação a produtos agropecuários obtidos à custa de devastação, invasão de áreas indígenas e trabalho escravo, uma parcela ainda minoritária, mas em expansão, do agronegócio soma forças, em alguma medida, aos demais interessados na preservação da Amazônia, do Cerrado e no respeito aos direitos humanos.
“O agronegócio empresarial, do capitalismo puro, não está invadindo terra, não se instala em áreas de floresta, não queima mata protegida nem mata índio. Portanto, quem vai colocar trator na Praça dos Três Poderes é o madeireiro, o grileiro, o garimpeiro, esse bas-fonds, ou submundo, do agronegócio”, chama atenção Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero. Segundo levantamento do observatório De Olho nos Ruralistas, as empresas que invadiram a Esplanada em setembro do ano passado têm histórico de trabalho escravo, crimes ambientais e conflitos agrários.
Um exemplo do agronegócio empresarial mencionado por Belik é a empresa Suzano, de papel e celulose, que no começo do ano passou a fazer parte do Índice Carbono Eficiente da B3, isto é, foi incluída em um indicador formado por empresas sustentáveis na Bolsa brasileira. Além disso, integra o Índice de Sustentabilidade Empresarial e o Índice Dow Jones de Sustentabilidade – Mercados Emergentes, na Bolsa de Nova York, e foi a segunda companhia do mundo, e a primeira das Américas, a emitir títulos sustentáveis em empréstimos vinculados a metas ambientais.
Não é um caso isolado. Em carta aberta aos presidenciáveis divulgada em abril, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável propõe que os candidatos prometam “honrar os compromissos já assumidos pelo País”, diante da sua Constituição e de instituições internacionais, em relação a direitos humanos, desmatamento ilegal, emissões de gases de efeito estufa, desenvolvimento sustentável, erradicação da fome, atenção à saúde e combate à discriminação de grupos sociais vulneráveis. Além da Suzano, integram o grupo as empresas JBS, Marfrig, Cargill, BRF, Nestlé e Bayer, entre outras, além de bancos.
Uma parcela dos produtores insiste em devastar a natureza e afrontar direitos. É ela que apoia o ex-capitão
No outro lado do espectro ruralista, sobressai a figura do fazendeiro de soja Antônio Galvan, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), proibido pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, em agosto do ano passado, de se aproximar da Praça dos Três Poderes e de participar de eventos do 7 de Setembro. Galvan, entre outras, foi acusado de convocar a população, através de redes sociais, a praticar atos criminosos e violentos de protesto às vésperas do feriado.
Apontado como um dos financiadores dos atos antidemocráticos, Galvan já foi multado por desmatar 500 hectares de vegetação nativa e por vender soja sem nota fiscal. Responde na Justiça por plantio clandestino de grãos e por uma tentativa de invasão de terra em uma fazenda vizinha à sua. Moraes determinou também o bloqueio das contas da Aprosoja Brasil e da Aprosoja Mato Grosso, devido à existência de indícios de repasse ilegal de recursos públicos do Fundo Estadual de Transporte e Habitação e da Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal de Mato Grosso do Sul para financiar as manifestações a favor de Bolsonaro.
O problema, é importante ressaltar, não está no agronegócio em si. Antes, o contrário, pois o setor foi a salvação da economia do País que, após 40 anos de desindustrialização, teria regredido ainda mais, não fosse a pujança desse segmento. O que atrasa o setor é a existência de uma ampla parcela que insiste tanto em não observar as práticas internacionalmente consagradas para conciliar agricultura e pecuária com a preservação da natureza quanto em seguir o bolsonarismo, que hoje afronta a conservação da natureza e os direitos de trabalhadores e das populações indígenas. O índice mais baixo de resgates do trabalho escravo foi registrado no governo Bolsonaro, que reduziu verbas de fiscalização e critica as ações para coibir a prática.
Cinzas. O agronegócio empresarial mais evoluído não queima mata protegida – Imagem: iStockphoto
Os contrastes entre o agronegócio bolsonarista e aquele que se opõe às políticas do governo às vezes se mostram, contudo, um tanto tênues. “Quem está de fora percebe certa diferença, um gradiente, entre um conjunto de atores mais imediatistas, bastante imunes a pressões externas — sobretudo de parte relevante da agricultura patronal, e, em certa medida, das indústrias das quais ela é cliente e que a apoiam – e agentes empresariais mais sensíveis a valores ambientais e de direitos humanos”, aponta a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no prefácio do livro Formação Política do Agronegócio, do também antropólogo Caio Pompeia. “Mesmo assim, para evitar rupturas, os diferentes grupos preferem apresentar-se publicamente como um bloco indiviso.”
Segundo Pompeia, com Bolsonaro, pela primeira vez, o discurso, as medidas provisórias e as omissões de um presidente foram abertamente anti-indígenas e antiambientalistas. “Desde 2019, os atores do agronegócio se acharam finalmente no centro do próprio governo e ocuparam ministérios essenciais. Até o Ministério do Meio Ambiente e a Funai ficaram sob o comando de aliados do setor”, sublinha Pompeia. As modificações incluíram a transferência, para a Agricultura, de funções que estavam em outros ministérios, como as vinculadas à agricultura familiar, ao serviço florestal, à reforma agrária e à demarcação de terras indígenas.
Bolsonaro alinhou-se ideologicamente à União Democrática Ruralista. O chamado “dia do fogo”, em 10 de agosto de 2019, “mostrou como o discurso presidencial vinha sendo percebido”. Nessa data, enquanto a Amazônia enfrentava números recordes de queimadas, um grupo de fazendeiros do Pará decidiu atear fogo à selva em ação coordenada de apoio às políticas de desmonte na área ambiental do governo.
Pela primeira vez, um governo é abertamente anti-indígena e antiambientalista
Com o novo governo, diz Pompeia, espalhou-se também o entendimento de que as terras da União invadidas, especialmente as indígenas, seriam regularizadas em favor dos invasores. “Isso fomentou a grilagem direta ou por terceiros, como no caso de fazendeiros que doavam ou vendiam barato a agricultores pobres lotes de terras invadidas, com o objetivo de criar um ‘problema social’ e um fato consumado, na eventualidade de uma retirada do invasor.” O resultado, sublinha o antropólogo, foi uma corrida a terras indígenas e unidades de conservação. Madeireiros desmataram seletivamente essas áreas, sem medo da fiscalização, enquanto funcionários do Ibama eram exonerados porque, cumprindo a lei, destruíram maquinário de empresas de garimpagem.
Em 2020 houve, porém, um aumento significativo das críticas externas ao governo brasileiro por parte de grandes fundos de investimento e líderes políticos, redes de varejo e restaurantes, diante da elevação dos índices de desmatamento, das iniciativas legislativas que favoreciam a apropriação de terras públicas e da manifestação do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, de que o governo deveria aproveitar a comoção da pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”, isto é, enfraquecer dispositivos de proteção ao meio ambiente.
Tais mudanças, sublinha Pompeia, implicaram “notável alargamento de riscos” à reputação das corporações, ameaças a acordos comerciais do País e possibilidades de desinvestimentos, entre outras consequências. “Como resultado da crescente pressão, houve incentivo à ampliação de posicionamentos públicos de agentes do campo, o que atribuiu novos desdobramentos a um processo de diferenciação entre os segmentos do agronegócio”, ressalta o antropólogo.
Contraste. Grandes empresas do setor de papel e celulose operam em áreas reflorestadas. O trabalho escravo persiste entre os madeireiros ilegais – Imagem: Sinait/DF e iStockphoto
Contrariadas com a reação internacional, as entidades Confederação da Agricultura e Pecuária, Aprosoja Brasil, União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia, Federação dos Plantadores de Cana, Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados e Sociedade Rural Brasileira, entre outras, fizeram publicar na mídia um informe publicitário de apoio à política ambiental do governo.
No sentido oposto destaca-se a entrega recente de uma carta subscrita por quatro entidades do setor, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Indústria Brasileira da Árvore e a Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal, ao Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. O documento propõe a cooperação entre a iniciativa privada e o Estado para o combate inflexível e abrangente ao desmatamento ilegal na Amazônia e demais biomas. O pacto inclui o compromisso com a inclusão social e econômica de comunidades locais para garantir a preservação das florestas, a minimização do impacto ambiental no uso dos recursos naturais, a valorização e preservação da biodiversidade, a adoção de mecanismos de negociação de créditos de carbono e o direcionamento de financiamentos e investimentos para uma economia circular e de baixo carbono.
“O agronegócio mais esclarecido percebe que Bolsonaro, na verdade, mais prejudica os negócios do que ajuda. O que está acontecendo agora, essa prosperidade do setor agropecuário, tem a ver com os preços externos, as facilidades de exportação e a escassez de alguns produtos. Isso não tem nada a ver com Bolsonaro. Esses que vão desfilar na Praça dos Três Poderes só atrapalham os negócios”, resume Belik. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O joio e o trigo “
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