Economia

O desenvolvimentismo de direita

Uma lembrança de Roberto Campos e uma análise das atuais controvérsias

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Em um de seus derradeiros artigos publicados na Folha de S.Paulo, Roberto Campos sentenciava que “os ‘desenvolvimentistas’ não entendem nada de desenvolvimento”. Nesse momento, corria solto, no governo FHC, o conflito entre desenvolvimentistas e a turma do deixa disso.

Entre tantos talentos, Campos passou a vida aperfeiçoando o de espicaçar tudo o que se assemelhasse à heterodoxia. Ex-seminarista e conhecedor de grego, sabia da importância da palavra doxa.

Essa inclinação ao mot d’esprit, sempre beirando o sarcasmo, parece vicejar com mais força entre os conservadores que, num momento de irreflexão, flertaram com o progressismo. Nesse mister, Campos chegou ao delírio, lançando boutades de grosso calibre contra todo tipo de socialismo, nacionalismo e outros partidarismos que considerava irracionais. Dizia, por exemplo, que, “no socialismo, as intenções são melhores que os resultados e, no capitalismo, os resultados são melhores que as intenções”. Achincalhou a “bazófia nacionaleira que substitui a organização pela emoção e confunde a energia intrínseca da onda com o farfalhar frívolo da escuma”.

Em matéria de (mau) humor, exagerou na dose quando apoiou o golpe militar de 1964 e, no livro Do Outro Lado da Cerca, de 1967, escreveu: “Sobre as eleições diretas no Brasil, o melhor que se pode dizer é que funcionaram bem enquanto não existiram”. Uma espécie de revanche do cinismo autoritário contra os exageros da sua razão democrática.

Ministro do governo Castelo Branco, foi protagonista, juntamente com Otávio Gouveia de Bulhões e Mário Henrique Simonsen, das reformas econômicas e financeiras que prepararam o “Milagre Brasileiro” do fim dos anos 1960 e começo dos 1970.

Como M. Jourdain, personagem de Molière no Burgeois Gentilhomme, Campos foi um desenvolvimentista sem saber. Isso é o que diz a sua biografia de homem de Estado, a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo dos anos 1950, participou de todos os empreendimentos e reconstruções institucionais que alicerçaram o surto desenvolvimentista. Depois de concluir o mestrado em Economia na Universidade George Washington, integrou a delegação brasileira na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Em 1950, participou da II Conferência da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), foi conselheiro da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e teve papel preponderante na fundação do BNDE.

Ao assumir a direção do banco, ensejou a criação do grupo misto Cepal-BNDE, um valhacouto de desenvolvimentistas que espalharia (e continua espalhando) suas ideias malignas, por muito tempo, Brasil afora.

Campos, tal como outros que o sucederam na corrente conservadora, escrevia uma coisa e fazia outra. Sua vantagem é que a maré do capitalismo estava na enchente, enquanto os pósteros pegaram a vazante.

O “desenvolvimentismo”, enquanto projeto ideológico e prática política nos países da periferia, nasceu nos anos 30, no mesmo berço que produziu o keynesianismo nos países centrais. A onda desenvolvimentista e a experiência keynesiana tiveram o seu apogeu nas três décadas que sucederam o fim da Segunda Guerra Mundial. O ambiente político e social estava saturado da ideia de que era possível adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e avanço social.

Os resultados, ainda que desiguais, não foram ruins. Comparada a qualquer outro período do capitalismo, anterior ou posterior, a era desenvolvimentista e keynesiana apresentou desempenho muito superior em termos de taxas de crescimento do PIB, de criação de empregos, de aumentos dos salários reais e de ampliação dos direitos sociais e econômicos. A moda então entre os economistas, sociólogos e cientistas políticos, eram as teo-rias do desenvolvimento, os modelos de crescimento econômico e o estudo das técnicas de programação e de planejamento.

Não se trata, naturalmente, de reinventar nem de chorar o “desenvolvimentismo” perdido, de resto uma experiência histórica singular do capitalismo. Mas é possível concluir, ao menos, que os “desenvolvimentistas” entendiam bastante de desenvolvimento. Desconfio – sempre mergulhado na dúvida, mas apoiado nos acontecimentos recentes – que entendiam do assunto deles muito mais do que os assim chamados monetaristas imaginam saber dos mistérios da moeda.

Seja como for, o historiador Fernand Braudel, no primeiro volume de sua obra maior, Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV a XVIII, analisando os ciclos econômicos de longa duração, não perdeu a oportunidade de incomodar o leitor com uma frase terrível: “O homem só é feliz em breves intervalos e só se dá conta disso quando já é muito tarde”.

*Este artigo foi publicado por ocasião da morte do ex-ministro Roberto Campos. Diante da controvérsia sobre o desenvolvimentismo de esquerda, decidi republicar o texto, como um exemplo cabal dos ardis da razão.

Em um de seus derradeiros artigos publicados na Folha de S.Paulo, Roberto Campos sentenciava que “os ‘desenvolvimentistas’ não entendem nada de desenvolvimento”. Nesse momento, corria solto, no governo FHC, o conflito entre desenvolvimentistas e a turma do deixa disso.

Entre tantos talentos, Campos passou a vida aperfeiçoando o de espicaçar tudo o que se assemelhasse à heterodoxia. Ex-seminarista e conhecedor de grego, sabia da importância da palavra doxa.

Essa inclinação ao mot d’esprit, sempre beirando o sarcasmo, parece vicejar com mais força entre os conservadores que, num momento de irreflexão, flertaram com o progressismo. Nesse mister, Campos chegou ao delírio, lançando boutades de grosso calibre contra todo tipo de socialismo, nacionalismo e outros partidarismos que considerava irracionais. Dizia, por exemplo, que, “no socialismo, as intenções são melhores que os resultados e, no capitalismo, os resultados são melhores que as intenções”. Achincalhou a “bazófia nacionaleira que substitui a organização pela emoção e confunde a energia intrínseca da onda com o farfalhar frívolo da escuma”.

Em matéria de (mau) humor, exagerou na dose quando apoiou o golpe militar de 1964 e, no livro Do Outro Lado da Cerca, de 1967, escreveu: “Sobre as eleições diretas no Brasil, o melhor que se pode dizer é que funcionaram bem enquanto não existiram”. Uma espécie de revanche do cinismo autoritário contra os exageros da sua razão democrática.

Ministro do governo Castelo Branco, foi protagonista, juntamente com Otávio Gouveia de Bulhões e Mário Henrique Simonsen, das reformas econômicas e financeiras que prepararam o “Milagre Brasileiro” do fim dos anos 1960 e começo dos 1970.

Como M. Jourdain, personagem de Molière no Burgeois Gentilhomme, Campos foi um desenvolvimentista sem saber. Isso é o que diz a sua biografia de homem de Estado, a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo dos anos 1950, participou de todos os empreendimentos e reconstruções institucionais que alicerçaram o surto desenvolvimentista. Depois de concluir o mestrado em Economia na Universidade George Washington, integrou a delegação brasileira na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Em 1950, participou da II Conferência da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), foi conselheiro da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e teve papel preponderante na fundação do BNDE.

Ao assumir a direção do banco, ensejou a criação do grupo misto Cepal-BNDE, um valhacouto de desenvolvimentistas que espalharia (e continua espalhando) suas ideias malignas, por muito tempo, Brasil afora.

Campos, tal como outros que o sucederam na corrente conservadora, escrevia uma coisa e fazia outra. Sua vantagem é que a maré do capitalismo estava na enchente, enquanto os pósteros pegaram a vazante.

O “desenvolvimentismo”, enquanto projeto ideológico e prática política nos países da periferia, nasceu nos anos 30, no mesmo berço que produziu o keynesianismo nos países centrais. A onda desenvolvimentista e a experiência keynesiana tiveram o seu apogeu nas três décadas que sucederam o fim da Segunda Guerra Mundial. O ambiente político e social estava saturado da ideia de que era possível adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e avanço social.

Os resultados, ainda que desiguais, não foram ruins. Comparada a qualquer outro período do capitalismo, anterior ou posterior, a era desenvolvimentista e keynesiana apresentou desempenho muito superior em termos de taxas de crescimento do PIB, de criação de empregos, de aumentos dos salários reais e de ampliação dos direitos sociais e econômicos. A moda então entre os economistas, sociólogos e cientistas políticos, eram as teo-rias do desenvolvimento, os modelos de crescimento econômico e o estudo das técnicas de programação e de planejamento.

Não se trata, naturalmente, de reinventar nem de chorar o “desenvolvimentismo” perdido, de resto uma experiência histórica singular do capitalismo. Mas é possível concluir, ao menos, que os “desenvolvimentistas” entendiam bastante de desenvolvimento. Desconfio – sempre mergulhado na dúvida, mas apoiado nos acontecimentos recentes – que entendiam do assunto deles muito mais do que os assim chamados monetaristas imaginam saber dos mistérios da moeda.

Seja como for, o historiador Fernand Braudel, no primeiro volume de sua obra maior, Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV a XVIII, analisando os ciclos econômicos de longa duração, não perdeu a oportunidade de incomodar o leitor com uma frase terrível: “O homem só é feliz em breves intervalos e só se dá conta disso quando já é muito tarde”.

*Este artigo foi publicado por ocasião da morte do ex-ministro Roberto Campos. Diante da controvérsia sobre o desenvolvimentismo de esquerda, decidi republicar o texto, como um exemplo cabal dos ardis da razão.

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