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O culto dos ‘midiamacro’

Economistas do mainstream repetem à exaustão os cânticos de dogmas religiosos

O culto dos ‘midiamacro’
O culto dos ‘midiamacro’
Imagem: Vecteezy/Iftistock
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O economista Simon Wren-Lewis usou o termo “midiamacro” para descrever o discurso dominante na mídia, empenhada em disseminar certa visão da economia. Essa visão abriga a síndrome de um conjunto de sinais e sintomas médicos frequentemente associados a uma condição ou doença específica que pode ter múltiplas causas, ou a causa pode ser desconhecida.

No caso dos economistas mainstream, os sintomas e suas causas são conhecidos, ambos definidos nas etéreas regiões do fetichismo “científico”: os movimentos da economia monetário-financeira-capitalista são manietados por funções e equações lineares, transformando as diferenças em igualdades. Sem pudor, criam jargões, repetem à exaustão, como os cânticos diários nos cultos religiosos. Os “midiamacro” transformam a dinâmica em estática, ao descartar as evidências que apresentam os movimentos que assolam as economias monetário-financeiras-capitalistas. Assim escorraçam a temporalidade e as insistentes flutuações de renda e emprego, sempre mobilizadas pelas forças da finança.

Pedimos licença para citar o artigo de Nimesh Vora na Reuters: o enfraquecimento do dólar desde o início da Presidência de Donald Trump tem feito com que ele se torne a moeda de financiamento preferida para as operações de carry ­trade, fomentando fortes fluxos para moedas de mercados emergentes com maior rendimento. Os carry trades financiados pelo dólar na rupia indonésia, na rupia indiana, no real e na lira turca, entre outras moe­das, estão de volta à moda, disseram gestores de fundos. Em uma típica operação de carry trade, investidores usam moedas baratas para empréstimos, a fim de financiar investimentos naquelas com melhores rendimentos. Os retornos são maiores se a moeda emprestada enfraquecer.

Cabe aqui a citação de um recente artigo do economista grego Yanis ­Varoufakis: “Também sabemos quem não está disposto a ajudar a reequilibrar o mundo, os Estados Unidos. Enquanto o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, torna-se lírico sobre o reequilíbrio do comércio e dos fluxos de capital, o governo Trump, para o qual ele está trabalhando, está interessado apenas nos objetivos contraditórios de, por um lado, desvalorizar o dólar e, por outro, atrair quantidades ainda maiores de capital para os Estados Unidos – uma contradição que só pode ser resolvida por meio de coerção maciça que os EUA não têm poder e disciplina para implementar”.

Os “midiamacro” encastelados nas simplificações da teoria quantitativa da moeda insistem, de forma até paranoica, em dividir o mundo em dois blocos: o lado real da economia e o lado monetário. O dinheiro vem de fora, é “externo” aos movimentos da economia. Assim, é descartada a condição endógena do dinheiro nos movimentos que afetam as decisões dos agentes. Uma desgraça cognitiva.

Nessa toada monetarista emerge outro sintoma preocupante, propagado aos quatro cantos, que pretende garantir que a poupança determina ou financia o investimento, e, para deixar qualquer alienista preocupado, nossos “midiamacro” separam investimento produtivo do financeiro. Vamos considerar as chamadas operações de carry trade. Essa forma financeira gira no mundo na casa de 1 trilhão de dólares, procurando ganhar dinheiro rápido e fácil. Valendo-se da arbitragem câmbio/juros (para os leigos), trata-se da diferença entre as moedas e suas respectivas taxas de juro dos países. Esse movimento está valorizando as outras moedas em relação ao dólar. Por exemplo, o real neste momento. Perguntamos aos “midiamacro”: essa valorização do real causada por esse influxo de uma operação financeira não interfere na determinação de preço nos produtos importados e exportados? Outra pergunta: por que essa “poupança” não vai para o investimento produtivo?

O enfraquecimento do dólar abre espaço para a especulação com moedas, entre elas o real

Pedimos licença e paciência ao leitor para novamente desmascarar o discurso dos “midiamacro”. Recorremos às Sagradas Escrituras para registrar a luta de Davi contra Golias. A pedra atirada por Davi, além de certeira, tem de ser fatal.

No artigo publicado no Institute for New Economic Thinking, Thomas ­Ferguson disparou: “O contraste gritante entre o crescente papel financeiro e a formação real de capital está tornando a afirmação de que as finanças servem à economia real, na medida em que alguma vez foi verdadeira, bastante precária. Os fluxos brutos astronômicos que fluem pelos mercados monetários contemporâneos estão apenas obliquamente relacionados à atividade econômica real. Uma alta porcentagem, provavelmente a maioria, origina-se de esforços para proteger-se dos riscos que o próprio processo, com toda a sua alavancagem e margens minúsculas, cria”.

Em seu artigo, Thomas Ferguson informa que a escala total de intermediação financeira é de quase 174% do PIB, enquanto o investimento fixo privado não residencial somou apenas 13%. É evidente que a maior parte da intermediação financeira (dos bancos paralelos) nos EUA não serve à formação real de capital em nenhum sentido.

Os desencontros da macroeconomia são evidentes. A busca obsessiva pelo equilíbrio em um ambiente marcado por flutuações do PIB, do emprego, da renda e dos preços. Nesse ambiente cognitivo sobrevive o dogma de dividir a economia em duas placas tectônicas: a placa do investimento-poupança contrapõe-se à placa monetário-financeira.

Às vésperas da eclosão da crise financeira de 2008 prevaleciam a baixa inflação, a liquidez abundante e a avidez pelo risco. Muitos analistas enveredaram pelos traiçoeiros caminhos do “excesso de poupança global” como causa das transformações nas economias monetário-financeiras capitalistas. No ­limbo dos ­“midiamacro” repousa o crédito.

O economista Cláudio Borio, diretor da área monetária do Banco de Compensações Internacionais, descartou essa pretensão: “Esta é uma visão das finanças excessivamente estreita e restrita, pois ignora o papel do crédito monetário (…) Poupança e financiamento não são equivalentes em geral”. Lamenta o economista do BIS: “Os fatores financeiros ainda flutuam na periferia do pensamento macroeconômico”. •

Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O culto dos “midiamacro”’

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