Economia
O céu é o limite
A venda de ruas em São Paulo e a febre de edifícios nas alturas pelo País escancaram o poder das construtoras


A aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo de um projeto encaminhado pelo prefeito Ricardo Nunes autorizando a venda de uma travessa para completar uma área onde será construído um condomínio de luxo na região dos Jardins é mais um capítulo da escalada do poder dos incorporadores imobiliários e das construtoras sobre os bens públicos da maior cidade latino-americana, desfigurada pela verticalização desenfreada dirigida à classe média, simultânea ao inchaço da periferia pobre. O teor original do projeto encontra justificativas, segundo especialistas, à luz da legislação vigente, mas o acréscimo de nove emendas jabuti, sem ligação com a proposta original, prevê a privatização de outros espaços e cria perigosos precedentes. “Tem muita coisa ali que é aberração. As emendas não passaram por nenhum tipo de avaliação técnica, nem da prefeitura, nem de ninguém. A maior parte atende a interesses privados, não públicos, embora em alguns casos possa se considerar que faz algum sentido desincompatibilizar dos bens de uso comum alguns logradouros que perderam a função original. Mas é privatização de espaços públicos e deveria seguir algum tipo de diretriz mais geral, que, no caso, não existiu. Foram aleatórios. Vereadores escolheram alguns lugares e fizeram essa proposta”, dispara o vereador Nabil Bonduki, arquiteto e urbanista, que votou contra o projeto.
“Quanto às primeiras duas ruas, eu não tenho dúvida de que a venda faz sentido, o problema é que pela porteira em que passa um boi, passa uma boiada, e as emendas agregadas não têm sentido e é preciso tomar cuidado”, sublinha a arquiteta e urbanista Marilena Fajersztajn. É importante perceber a diferença entre a propriedade privada, o bem dominial e o bem comum de uso da população, acrescenta. As ruas são bens de uso público e podem ser vendidas, não é nenhuma novidade. Quando há intenção de vender, abre-se um processo que percorre todas as instâncias da prefeitura para verificar se há objeções técnicas e legais. Emite-se um parecer final do Departamento de Patrimônio e a proposta é submetida à aprovação pela Câmara. “Ocorre que é um processo longo, demora de oito a dez anos. No caso das emendas adicionadas, em vez de passar por esse processo na prefeitura, tentou-se um caminho mais veloz”, aponta a arquiteta.
A Câmara paulistana “pensa mais nos incorporadores”, reclama a arquiteta Marilena Fajersztajn
A Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, localizada entre a Alameda Lorena, a Rua Pamplona e a Avenida 9 de Julho, era parte integrante de uma vila, mas todas as casas tinham sido arrematadas pelo incorporador e a via perdeu seu sentido original. O que parece um detalhe e mesmo uma inevitabilidade, terá, porém, um desfecho nada trivial. A aquisição da rua possibilitará fechar uma área para construção de prédios e essa aglutinação vai quadruplicar o valor anterior, saltando para 24,7 mil reais o metro quadrado, entre os mais caros da cidade, acrescenta Bonduki. “O projeto original foi feito de encomenda para uma empresa, a única possível compradora, porque interessa a ela fazer o empreendimento.”
Além da lógica imobiliária e comercial, outros fatores deveriam ser levados em conta, aponta Bonduki. Mesmo na forma original e antes do acréscimo das emendas que estenderam a privatização a outras ruas, ele estimula a supressão de vilas. A lei de ocupação do solo aprovou a possibilidade de, após uma incorporadora comprar todas as casas de uma vila, mudar o zoneamento e aí sobra a rua, e compra-se a rua também. Foi isso que aconteceu no caso da via vendida. “Com a situação que se criou ali, talvez não houvesse outra solução além dessa. Mas isso foi consequência de uma coisa que estava errada, a supressão da vila”, diz o vereador. Uma alternativa para o uso dos 16 milhões de reais recebidos pela prefeitura com a transação, propõe o vereador, seria a compra de área para se fazer um amplo parque em uma região periférica com escassez de áreas verdes. “O Plano Diretor tem de ser revisto a cada dez anos, e de fato foi, mais ou menos. A questão política é terrível. A Câmara Municipal pensa muito mais nos incorporadores do que na população como um todo. E há esse Congresso infeliz no plano nacional. Estamos numa época dificílima. Mas é legal, no caso dos vereadores, eles conseguiram aprovar a lei desse jeito”, dispara Fajersztajn.
Na revisão, brecou-se a verticalização no entorno da Estação Vila Madalena do metrô. Quem aprovou, aprovou, quem não aprovou, não aprova mais. “Se foi por uma questão urbanística ou por pressão da população, é outra questão. Eu sou desse bairro, ajudei a pressionar”, acrescenta a arquiteta. A ideia da verticalização perto de eixos do sistema de transporte faz sentido, mas a mão da Câmara na revisão do Plano Diretor foi “muito pesada”. A preservação da memória e da cultura é muito importante. Há lugares que são memórias afetivas de São Paulo e não pode tudo ir embora, afirma.
Dubai brasileira. Balneário Camboriú se esmera – Imagem: Redes Sociais
Após a derrubada em série de barreiras legais e regulatórias à voracidade dos proprietários de terrenos em São Paulo, eles se refestelam em um dos mercados imobiliários mais lucrativos do mundo, a julgar pelos dados disponíveis. A rentabilidade média do investimento imobiliário em São Paulo, segundo um estudo de março de 2025, alcançou 17,2% ao ano em 2024, acima dos níveis pré-pandemia e bem mais rentáveis do que as aplicações remuneradas pela taxa Selic. O retorno é superior àqueles verificados no Reino Unido (10,3%), Espanha (4% a 6%), Mônaco (9%), Nova York (6%) e Hong Kong (3,7%), entre outros.
Acrescentar emendas e jabutis e desfigurar Projetos de Lei não é a única semelhança entre as condutas de expressiva parcela de vereadores paulistanos e deputados federais, estes com suas famigeradas emendas do Orçamento e táticas de ocupação. Uma audiência pública sobre a construção do túnel da Rua Sena Madureira, na capital paulista, foi ocupada por uma multidão trazida em ônibus pagos pela prefeitura, segundo denúncias na Câmara. A ocupação resultou em tumulto e pancadaria.
O Senna Tower, em Balneário Camboriú, será o prédio residencial mais alto do mundo
O projeto de privatização, possibilitado pelo desmonte sistemático da legislação e das normas regulatórias que atenuavam parte da especulação imobiliária, acentua a verticalização da cidade, vista por muitos urbanistas como desvirtuada. A verticalização faz sentido, afirmam seus defensores, pois otimiza o uso de infraestruturas, como o transporte público, e pode gerar mais valor para os imóveis devido à sua localização estratégica e à concentração de serviços. Ocorre que a lógica do processo é determinada pela possibilidade de diluir o custo do terreno entre várias unidades, permitindo construir mais imóveis numa área limitada, o que valoriza o espaço e aumenta a margem de lucro das incorporadoras.
A verticalização, mostra o projeto de venda de ruas em São Paulo, é um anabolizante poderoso da lucratividade de um terreno. Ela tem também valor intangível altamente simbólico decorrente do casamento entre conservadorismo político e poder financeiro, como ilustra à perfeição a verticalização extrema em Balneário Camboriú, Santa Catarina, bunker bolsonarista que se ufana de ter o arranha-céu mais alto do País. Há uma competição bizarra na cidade onde o caçula da família Bolsonaro foi eleito vereador. Em 2022, o Yachthouse Residence Club, um complexo residencial de apartamentos de alto luxo composto de duas torres gêmeas, em uma paródia das originais nova-iorquinas de final funesto, foi inaugurado e ganhou a medalha de edifício mais alto do Brasil, com 281 metros. A glória não durou muito tempo e as torres gêmeas foram ultrapassadas pelo One Tower, na mesma cidade, com 290 metros. Em 2024, entretanto, o acréscimo de dois pináculos reconduziu as torres gêmeas nacionais ao primeiro lugar no pódio, agora com 294,1 metros. Dois projetos recentes do campeonato de breguice imobiliária ameaçam, contudo, as torres gêmeas na cidade, o The Tower, com 340 metros, e o Senna Tower, em fase de lançamento, com 544 metros, que promete ser o prédio residencial mais alto do mundo. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O céu é o limite’
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