Economia

O Simples Nacional e a armadilha da pequena empresa

Para corrigir as distorções, é preciso reestruturar todo o sistema tributário

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Já faz mais de 20 anos desde que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil inexplicavelmente ainda não faz parte, publicou um estudo sobre as pequenas empresas (PEs) no qual concluiu que os benefícios tributários concedidos a elas tinham, em regra, efeitos muito ruins para a economia.

De lá para cá, essa tributação favorecida tem sido analisada com bastante cuidado, e muitos benefícios foram extintos ou redesenhados nos países membros da OCDE.

No Brasil, entretanto, sempre na contramão do mundo, criou-se em 2006 um imenso e confuso sistema especial de tributação das PEs, que unificou outros antes existentes.

O Simples Nacional (SN) não é simples, nem nacional. Envolve diversos tributos e peculiaridades, que o tornam bastante complexo e confuso. Ao mesmo tempo tem inúmeras exceções, muitas inexplicáveis, de forma que não é exatamente nacional.

Por que uma pequena cervejaria não pode optar pelo SN? O mercado talvez não esteja suficientemente concentrado pela Ambev.

A análise para decidir se vale a pena entrar no SN já é difícil, apesar de o senso comum achar que esse regime é sempre melhor. Há questões de substituição tributária, tomada de créditos de PIS, Cofins e IPI, e outras que precisam ser avaliadas com cuidado, sobretudo em empresas industriais e comerciais.

O SN é, portanto, um paliativo para o hediondo sistema tributário brasileiro. Funciona assim: criou-se o pior sistema tributário do mundo e, então, para que as PEs consigam viver nessa balbúrdia, há um regime excepcional, completamente diferente do outro.

É curioso notar, porém, que o regime comum se tornou o excepcional, e vice-versa, pois mais de 90% das empresas do Brasil estão no SN. Sendo assim, o gigantesco e péssimo sistema tributário brasileiro se aplica apenas à grande minoria das empresas, ainda que sejam as que geram mais arrecadação.

Essas políticas tributárias causam imensos problemas quase nada discutidos no Brasil. O primeiro é a fratura entre os sistemas, que pouco se comunicam, pois são muito desconexos. Isso gera confusão e dificuldade de operação, mesmo no caso do SN.

O pior de tudo, entretanto, é a armadilha da pequena empresa (small business trap) criada por esses sistemas, uma consequência da concessão de benefícios que fazem as PEs desistirem de crescer por não quererem deixar de gozá-los, o que acontece no Brasil.

Os casos de PEs que sonegam receitas para continuarem enquadradas no SN são recorrentes todos os meses no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Por ser um grande benefício para uma parte das empresas e por outras acharem erroneamente que ele seja, a imensa maioria não quer crescer ou, ao menos, não quer transparecer que cresceu.

Alocações ineficientes de recursos são realizadas para, por exemplo, dividir empresas ao meio e não permitir que o teto de receitas para optantes do SN seja ultrapassado.

Deste modo, o SN, um regime muito mal desenhado e em desacordo com as diretrizes mais avançadas no mundo, mais prejudica do que beneficia a economia, apesar de ser importante para livrar as PEs do sistema “normal”, que é uma calamidade.

Os benefícios tributários concedidos a PEs têm, em regra, o objetivo de fazê-las crescer, gerando aumento de produção, inovação e empregos. Aí está o paradoxo desses benefícios, que, a depender do seu desenho, podem incentivá-las a não crescer, gerando, de quebra, enorme queda de arrecadação e crise fiscal. É o caso brasileiro.

A tendência no mundo mais desenvolvido tem sido conceder benefícios muito pontuais, pensados cuidadosamente para resolver problemas específicos, como uma depreciação acelerada na compra de novos ativos imobilizados pelas pequenas indústrias para fomentar a formação de capital produtivo. 

Outra hipótese é estabelecer degraus de tributação no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), criando uma espécie de progressividade, que não objetiva exatamente redistribuição, como no caso do Imposto de Renda da Pessoa Física, até porque, como se sabe, o IRPJ costuma ser repassado a pessoas físicas, sobretudo consumidores. Essa progressividade busca dar um alívio financeiro às empresas menores frente às dificuldades enfrentadas por elas, como aconteceu recentemente na Austrália.

Um regime de benefícios completo envolvendo a maioria dos tributos existe apenas no Brasil, o país das jabuticabas tributárias. Seria o caso, então, de partir logo para a sua extinção? Esse é o risco de criticar o SN. As políticas públicas são geridas de forma tão ingênua e pautadas em interesses que é preciso tomar cuidado.

As PEs são mais frágeis, pois, dentre outros fatores, costumam ter menos capacidade financeira para suportar crises; menos lastro para conseguir crédito, sobretudo barato; menos acesso a informação (assimetria); são alvos de ações das empresas maiores para expurgá-las do mercado; e sentem mais o peso da tributação e da burocracia, inclusive a tributária. 

Como se nota, há vários problemas, porém apenas os dois últimos são tributários. É por isso que se busca nos países desenvolvidos focar em um sistema ótimo como um todo e na simplificação das obrigações acessórias das PEs. Nesse último aspecto o SN é positivo.

A correção da armadilha da pequena empresa e das distorções causadas pelo SN é, portanto, a reestruturação de todo o sistema tributário. Como o brasileiro é, de longe, o mais extenso e confuso do mundo, torna-se imprescindível um sistema bem distinto, que permita às PEs sobreviverem sem tantos privilégios causadores de mais custos do que benefícios.

Elas não estão crescendo, a grande maioria morre nos primeiros quatro anos e muitas já fecham no primeiro ano. As recomendações de políticas públicas para lidar com esses problemas são as seguintes.

Uma reforma tributária que elimine tributos, regimes especiais, antecipações, substituições etc., ou seja, toda a quinquilharia de privilégios e sistemáticas para facilitar a arrecadação precisa ser revista e provavelmente extinta.

Essa mesma reforma deve privilegiar muito a tributação altamente progressiva da pessoa física e desonerar as pessoas jurídicas o máximo possível, especialmente no tocante à tributação sobre o consumo.

Com um sistema geral minimamente decente, o SN poderá deixar de existir, ficando apenas as simplificações de obrigações acessórias e talvez um ou dois benefícios muito bem desenhados para as circunstâncias específicas, como a premente necessidade de elevar a formação de capital produtivo.

Com um sistema muito mais simples, ficaria mais fácil fiscalizar todas as empresas, inclusive as pequenas, evitando com mais eficácia as sonegações e planejamentos.

A tributação da renda da pessoa jurídica, que já tem degraus hoje, continuaria assim, de modo que as PEs ficariam sujeitas a uma tributação de 15% de IRPJ. As grandes empresas não deveriam pagar mais do que 30%, considerando a absorção da CSLL pelo IRPJ. O objetivo de médio a longo prazo deveria ser tributá-las com alíquota máxima de 25%, ficando competitiva com os outros países.

É preciso aperfeiçoar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), tornando-o mais cuidadoso com as concentrações de mercado, que prejudicam as PEs e, portanto, a concorrência e o consumidor. Com a concentração de mercado da Ambev e a impossibilidade de ingressar no SN, o setor de cervejarias é praticamente inviável para as PEs.

O BNDES deve focar o crédito nas PEs de modo a democratizar o mercado, porém deve financiar apenas projetos realmente promissores, assim como não deve se fechar para projetos novos de médias e grandes empresas que tenham boa capacidade de gerar crescimento, inovação e empregos, conforme propõe recente trabalho do FMI.

Acima de tudo, é preciso estudar e debater muito mais esses temas. Desenhar boas políticas públicas é algo infinitamente mais complexo do que em geral se pensa no Brasil e a nossa situação concreta é anos luz pior do que se imagina.

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