Economia
O Brasil acima de tudo
Governo e empresários isolam o extremismo bolsonarista e se unem contra a chantagem de Trump
A necessidade de enfrentar a ameaça do tarifaço de 50% sobre os produtos brasileiros anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, abriu a porta para uma rara conciliação entre os interesses do agronegócio, da indústria, do Palácio do Planalto e do Congresso. Na terça-feira 15, sob a coordenação de Geraldo Alckmin, vice-presidente da República e ministro da Indústria, representantes de entidades empresariais de vários setores e integrantes do governo concordaram em fazer um esforço de negociação até 1º de agosto, prazo estabelecido pela Casa Branca para a entrada em vigor da taxação. Uma das possibilidades é tentar prorrogar a data do início das imposições. Se não der certo – e em último caso –, a União aplicaria a lei de reciprocidade aprovada pelo Parlamento do País. Os presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, reforçaram a iniciativa. Segundo estimativas que circularam no mercado, as taxas de 50% tendem a provocar o fechamento de 110 mil postos de trabalho, a redução das receitas das empresas em 19 bilhões de reais e queda do PIB de ao menos 0,2 ponto porcentual neste ano.
A mobilização nacional foi reforçada com a adesão, por meio da Câmara de Comércio Brasil–Estados Unidos, de empresários norte-americanos receosos das perdas significativas com a restrição tarifária às exportações do Brasil. O País fornece 30% do café e 70% do suco de laranja consumido pelos estadunidenses. Relacionados à suspensão de compra, por empresários daquele país, de aviões, carnes, minério de ferro, café, frutas, pescado e mel, os exportadores brasileiros começaram a sentir os prejuízos mesmo antes do início da cobrança.
Uma carta de Trump a Lula que condiciona a suspensão do tarifaço ao cancelamento dos processos contra Jair Bolsonaro abalou o apoio empresarial ao ex-presidente, dividiu o Centrão e aumentou a união em torno do governo para abrir negociações com os EUA. Em resposta, o Brasil enviou uma carta na terça-feira 16, na qual declara “indignação” com as medidas unilaterais.
Espremidos. Os produtores nacionais de laranja sofrerão enormes perdas – Imagem: iStockphoto
Não é a primeira vez que as empresas e a economia brasileira se veem diante de riscos estimulados, ou criados, pelo bolsonarismo. Em março de 2021, quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, ameaçou reduzir o imposto de importação de bens de capital, de informática e de telecomunicações, protestos da Abimaq, associação dos fabricantes de máquinas, e da Abinee, de eletroeletrônicos, obrigaram o governo a recuar. De modo inverso ao de Trump, o bolsonarismo fez algo com conotação semelhante, ao induzir e aplaudir retaliações fora da lógica econômica, ou com motivação ideológica, para justificar a quebra do regramento comercial e do direito internacional.
Motivadas pela necessidade de sobrevivência econômica, tanto as reações empresariais de agora quanto aquelas do início do governo Bolsonaro se diferenciaram, entretanto, do posicionamento de décadas atrás comandado pela indústria brasileira. Em 1978, em plena ditadura, Antônio Ermírio de Moraes, da Votorantim, e outros sete empresários vieram a público, calorosamente, pedir o fim do regime militar. Eles defenderam, em documento histórico, a democracia, a empresa nacional, o disciplinamento das companhias estrangeiras atuantes no País, investimentos públicos, uma política salarial justa, gastos sociais e liberdade sindical para patrões e trabalhadores, entre outros pontos. Em 1980, o mesmo grupo condenou, em documento, o estímulo à recessão como saída para uma crise econômica por provocar o desemprego e a desnacionalização, defendeu as instituições democráticas, repudiou o terrorismo de direita e o projeto de abertura do general João Figueiredo, o último ditador. Em outubro de 1998, as indústrias entregaram a FHC um projeto para melhorar o País e cobraram uma atitude.
A disposição de negociar foi reafirmada. Resta saber se há interesse dos EUA
Na mobilização contra a escalada tarifária de Trump destaca-se uma manifestação da China, maior parceiro comercial e principal alvo da Casa Branca. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Mao Ning, afirmou que a taxação não deve ser usada como forma de “coerção, intimidação e interferência nos assuntos internos de outros países”. Mao afirmou ainda que igualdade soberana e não interferência em questões internas são princípios importantes da Carta da ONU e normas básicas que regem as relações internacionais.
A primeira atitude empresarial de protesto à ameaça tarifária partiu da Federação das Indústrias de São Paulo. Em nota oficial, a Fiesp condenou a iniciativa do presidente dos EUA, decidida com base em “razões não econômicas usadas para explicar a quebra de todo o regramento comercial e do direito internacional”, e afirmou que, “apesar dos prejuízos à indústria, a soberania nacional é inegociável”. A Abimaq declarou que levar a medida adiante significa decretar o fim do comércio bilateral, o que não faz sentido no contexto da guerra comercial dos EUA contra a China. A mobilização contra a avalanche trumpista incluiu o posicionamento da Frente Parlamentar Agropecuária, que pediu “resposta firme” ao novo tarifaço, e a manifestação do ex-CEO do Itaú Cândido Bracher em artigo.
Cabe lembrar que a FPA foi fundamental para a recente aprovação da lei brasileira de reciprocidade econômica, que estabelece critérios para respostas a ações, políticas ou práticas unilaterais de país ou bloco econômico que “impactem melhoras na competitividade internacional brasileira”. A norma valerá para quem tentar interferir “nas escolhas legítimas e soberanas do Brasil”. Em uma manifestação destoante do tom geral do setor produtivo, a Confederação Nacional da Agricultura abraçou a tese bolsonarista e culpou as vítimas, Lula e o Supremo Tribunal Federal, pela chantagem trumpista.
Hábito. O Brasil exporta 30% do café consumido pelos norte-americanos – Imagem: iStockphoto
O anúncio de tributação das exportações brasileiras em 50% não bate com a realidade, sublinha o economista Antônio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo. Os dados do primeiro semestre de 2025 mostram que o Brasil teve um déficit de 1,7 bilhão de dólares no comércio bilateral, ao contrário das afirmações na carta de Trump. “Em especial para a indústria brasileira, a tributação, se de fato vier a ser aplicada, afetará a competitividade dos setores de aço, alumínio, máquinas e equipamentos, aeronaves e outros.”
Além da balança comercial, o Brasil também é deficitário na balança de serviços, incluindo despesas de royalties e licenças. Segundo Lacerda, a recente publicação da Lei de Reciprocidade Econômica é instrumento importante para ser utilizada em contraponto às medidas norte-americanas, se as negociações não prosperarem para uma saída plausível. “A ação do governo, de trazer para discussão os empresários, tanto brasileiros com negócios nos EUA quanto as filiais das empresas norte-americanas sediadas no Brasil, é fundamental para o sucesso da estratégia de negociação”, ressalta.
Aplicar a lei de reciprocidade será o último recurso
Um dos efeitos possíveis da escalada estadunidense é estimular a tendência de relocalização de empresas, ressalta o economista. A globalização econômica reforçou a relação entre comércio e investimentos. A localização das cadeias internacionais de abastecimento ocorreu em franca transformação pós-pandemia de Covid–19, o agravamento da crise climática e o acirramento de conflitos geoeconômicos e políticos. “Todos esses fatores têm implicado o reposicionamento da localização das empresas, que agora será muito influenciado pela ‘guerra tarifária’. Daí a importância de a negociação envolver as empresas norte-americanas aqui sediadas.”
Não será uma conversa fácil. Trump tem repetido que uma eventual redução das tarifas só ocorrerá se o processo no Supremo Tribunal Federal contra os golpistas for suspenso ou se for aprovada uma anistia. Muitos, inclusive no Palácio do Planalto, acreditam que a defesa aberta de Bolsonaro é um bode na sala, uma desculpa para esconder o verdadeiro interesse da Casa Branca: forçar o Brasil a permitir que as big techs operem no País como se estivessem em uma terra sem lei. Na segunda-feira 14, Washington aumentou a pressão. Com base na Seção 301, um dispositivo que permite aos EUA punirem parceiros supostamente envolvidos em práticas anticoncorrenciais, o Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) deu início a uma investigação contra o Brasil, conforme havia ameaçado o próprio republicano. É um samba do gringo doido. O USTR cita de forma indireta a adoção do Pix, considerada uma limitação aos meios de pagamento eletrônicos norte-americanos, a 25 de Março, tradicional rua de comércio popular em São Paulo, que seria símbolo da pirataria desbragada no País, e até um inverídico aumento do desmatamento – argumento cínico de um governo que nega os efeitos das mudanças climáticas e suspende os investimentos em transição energética em seu território. O Palácio do Planalto e o Itamaraty reforçaram a disposição para negociar. Resta saber se há espaço. Ou se a chantagem é um caminho sem volta. •
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Brasil acima de tudo’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.



