Economia
O bêbado e o equilibrista
No malabarismo dos economistas puristas, o dinheiro gasto some num esgoto e termina no fundo do oceano


“Economistas continuam a pregar o ideal positivista da objetividade científica, sem questionar sua viabilidade.” (Arnold Kling )
A incerteza da certeza ou a certeza da incerteza? Eis a questão, diria Hamlet. Essa indagação shakespeariana não perturbou os economistas do mainstream. Na economia dita pura de inspiração walrasiana, os preços estão sempre em estado de equilíbrio. Nesse mundo perfeito de certezas, não há dúvidas.
Joseph Schumpeter concebe as economias capitalistas como sistemas em evolução, sistemas que existem em seu movimento histórico determinado por sua estrutura e por sua dinâmica endógena. As sociedades são bestas evolutivas que não podem ser congeladas no tempo e reduzidas a fórmulas matemáticas estáticas. “Nenhuma doutrina, nenhuma visão que reduza a economia ao estudo da sustentação de equilíbrio pode ter uma relevância duradoura.”
Prega-se todo o santo dia que é preciso poupar, para depois investir. Se isso é verdade, faz-se necessário indagar: de onde vem a poupança? Apareceu num passe de mágica? Ou foi Deus quem criou?
Uma pergunta incômoda: como posso poupar sem renda? Para poupar, há que se criar renda primeiro. Se não há gasto, não há renda. Na operação do fluxo monetário, o investimento é gasto, diria Maynard. Caso tenha sucesso, vai gerar lucro. Assim, tenho renda para poupar.
Sofremos as dores da incerteza. O investimento é um risco, só vamos saber lá na frente se nossa decisão de investir vai corresponder às expectativas de hoje para alcançar um resultado – incerto – no futuro. Parece óbvio: para poupar, é preciso ter renda.
“É surpreendente em que coisas tolas pode-se acreditar temporariamente se se pensa sozinho por tempo demasiado, particularmente na Economia (bem como nas outras ciências morais), em que muitas vezes é impossível submeter as ideias que se tem a um teste conclusivo, quer formal, quer experimental.” (John Maynard Keynes, prefácio de A Teoria Geral)
Os orçamentos públicos são apenas uma previsão. Como posso saber antes minha arrecadação tributária, se não sei quanto vai crescer a economia? Como posso saber minha previsão futura de gastos, se não sei quanto vai crescer a economia? Como posso saber com tamanha precisão o crescimento futuro da dívida pública, se não sei quanto vai crescer a economia? Os modelos econométricos e computadores não acertam a taxa de juros e, muito menos, a taxa de câmbio. Isto porque operam com certeza sobre o futuro incerto.
“Todas as previsões, mesmo nas ciências físicas, são, na verdade, previsões condicionais. Elas dizem que, se o sistema permanecer inalterado e os parâmetros do sistema permanecerem inalterados, então tal e tal será o estado do sistema em determinados momentos no futuro. Se o sistema mudar, é claro que a previsão será falseada, e é isso que acontece em sistemas sociais o tempo todo…” (Kenneth Boulding)
Em economia, muitas vezes é impossível submeter as ideias a um teste conclusivo, formal ou experimental
Sempre alertam: cortem os gastos, aumentem a poupança, recuperem o estado de confiança e o futuro baterá às portas. Vamos ao consagrado risco fiscal, um mantra da visão convencional. Um descrente das certezas da vida indagaria: déficit não corresponde a um superávit? Não seria um fluxo monetário? Não parece esquisito, a presunção dos puristas da ciência econômica, que o dinheiro gasto some num esgoto e termina no fundo do oceano?
John Maynard Keynes sustenta que, no âmbito da “economia como um todo”, são os gastos das empresas, das famílias, dos estrangeiros e do Estado que “criam” a renda. Keynes concebe a organização da sociedade como uma teia de relações hierarquizadas entre proprietários capitalistas e trabalhadores. “Se a firma decide empregar trabalhadores para usar o equipamento de capital e gerar um produto, ela deve ter suficiente comando sobre o dinheiro para pagar os salários e as matérias-primas que adquire de outras firmas durante o período de produção, até o momento em que o produto seja convenientemente vendido por dinheiro.”
Se o Estado gasta para construir uma estrada, não está pagando os fornecedores? Desculpem, o mundo real é bem esquisito, pois o déficit público é superávit das empresas. Que óbvio, não? Não sabemos em que acreditar: no conto de fadas do saber convencional ou no movimento concreto das economias monetário-financeiras.
“O estilo que chamo de “matemática” permite que a política acadêmica se disfarce de ciência. Assim como a teoria matemática, a “matemática” utiliza uma mistura de palavras e símbolos, mas, em vez de estabelecer vínculos estreitos, deixa amplo espaço para deslizes entre afirmações em linguagem natural e formal, e entre afirmações com conteúdo teórico e não empírico.” (Paul Romer)
O bêbado e o equilibrista: para poupar é preciso ter dinheiro, e o dinheiro, para criar dinheiro, precisa ser investido. Na economia monetário-financeira capitalista o investimento é financiado por crédito.
É impossível compreender a dinâmica da economia capitalista sem entender as relações de determinação que configuram e reconfiguram as inter-relações entre os balanços dos “agentes relevantes” – bancos, empresas, famílias, governos e setor externo. Simplificadamente, o movimento vai da “criação” de dinheiro, mediante a emissão de crédito novo para financiar os gastos de investimento e de consumo – para a geração da renda, com a consequente acumulação de ativos e passivos nos balanços dos agentes.
“Uma economia monetária, iremos ver, é essencialmente uma economia em que as mudanças de pontos de vista sobre o futuro são capazes de influenciar o volume de emprego e não meramente a sua direção. Mas nosso método de analisar o comportamento econômico do presente sob a influência das mudanças de ideias sobre o futuro é um método que depende da interação da oferta e da demanda, ligando-se dessa forma a nossa teoria fundamental do valor. Somos levados dessa forma a uma teoria mais geral, que inclui como caso particular a teoria clássica com a qual estamos familiarizados .” (John Maynard Keynes, prefácio de A Teoria Geral)
Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso (Sampa, Caetano Veloso) •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O bêbado e o equilibrista’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.