Economia
O acordo possível
O governo Lula desiste de reestatizar a Eletrobras, mas consegue ampliar sua participação nas decisões da companhia


No Dia da Mentira, saiu mais um ranking dos bilionários do mundo, preparado pela revista Forbes. Para variar, um certo trio de empresários nativos despontava na lista. Jorge Paulo Lemann, com 17 bilhões de dólares, Carlos Alberto Sicupira, com 7,6 bilhões, e Marcel Telles, com 2,3 bilhões. Eles são sócios no grupo 3G, uma holding de negócios financeiros. Na véspera do ranking, o Ministério Público Federal havia denunciado à Justiça ex-dirigentes de uma companhia que a trinca controla. O acusado-mor é Miguel Gutierrez, presidente das Lojas Americanas durante as fraudes contábeis de mais de 20 bilhões de reais. Ele prestou depoimento por escrito a uma CPI em 2023 e falou dos acionistas graúdos. “Como é notório, e como consta inclusive do famoso livro que conta a sua trajetória empresarial, o 3G participa ativamente da gestão das empresas de seu portfólio e controla rigorosamente suas finanças”, registrou. O MPF não deu bola para esse tipo de coisa. A denúncia poupa Lemann, Sicupira e Telles.
Não é só no rolo das Americanas que os três têm motivo para alívio. Vale o mesmo sobre o desfecho de uma disputa na Eletrobras, a maior empresa de eletricidade da América Latina, privatizada a preço de banana a seis meses da saída de Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto. A companhia é outra sob as rédeas do 3G. Cinco meses após Lula voltar ao poder, o governo tinha ido ao Supremo Tribunal Federal em busca de voz e voto na ex-estatal compatíveis com o número de ações que possui. Acaba de aceitar um acordo que não atende ao objetivo nem mexe na lei da privatização, descrita no processo no STF como inconstitucional. Ganhou o direito de indicar quatro representantes para uma alta cúpula de 15 integrantes. Escolhidos de peso, pelo menos. Três ex-ministros (Silas Rondeau e Nelson Hubner, que chefiaram a pasta de Minas e Energia, e Guido Mantega, ex-Fazenda) e um diretor da Petrobras (Mauricio Tolmasquim). “Foi o melhor acordo possível dentro das circunstâncias, que não eram as ideais”, observa Flavio Roman, o número 2 da Advocacia-Geral da União.
Apesar de o Estado possuir a maior cota, quem manda são os sócios privados. Mais um legado de Paulo Guedes
De fato, não eram favoráveis ao governo as circunstâncias que o levaram a assinar o acordo em 26 de março. O relator do caso no STF era Nunes Marques, nomeado para a Corte pelo presidente privatizador. O juiz ignorou o pedido lulista de liminar e ainda determinou que as partes negociassem fora do tribunal a partir de dezembro de 2023. Caso não houvesse consenso entre elas, só por milagre o governo ganharia um eventual julgamento. O Supremo pode até dar vida difícil a Bolsonaro e companhia em temas ligados à democracia, mas na economia é neoliberal. Em regra, fica com patrões e endinheirados – e contra os trabalhadores. A AGU havia compilado decisões da Corte em processos questionadores de privatizações e concluído que jogava na casa do adversário.
É de se supor que os sócios privados da Eletrobras e seus prepostos na diretoria tenham feito análise similar e identificado chances enormes de vitória. Daí a posição muito dura nas negociações com o governo, conforme relatos em Brasília. Sua bancada nas reuniões tinha o presidente da companhia, Ivan Monteiro, e os diretores Marcelo de Siqueira Freitas, do jurídico, Rodrigo Limp, da área institucional, e Élio Wolff, da área de estratégia. Os três primeiros eram a própria encarnação da privatização. Limp era o chefe da Eletrobras no dia da desestatização, e tinha sido colaborador do almirante Bento Albuquerque quando este comandava a pasta de Minas e Energia. Siqueira havia sido assessor de Paulo Guedes no Ministério da Economia. Guedes sonhava com a venda da Eletrobras desde os tempos de conselheiro informal do governo Collor, nos anos 1990.
Reforço. Tolmasquim, ex-diretor da Petrobras, e os ex-ministros Hubner, Rondeau e Mantega agora integram a cúpula da empresa – Imagem: Marcello Casal Jr./ABR, Roberto Corradine/GOVPR, Roque de Sá/Agência Senado e Tânia Rêgo/ABR
Monteiro, que é engenheiro, entrou na Eletrobras via 3G, logo após a privatização de junho de 2022. De início, pertencia ao conselho de administração, a instância dos rumos estratégicos. Era seu comandante. Em agosto de 2023, saiu dali para ser o principal executivo, o timoneiro do dia a dia. Em seu lugar à frente do colegiado ficou outro engenheiro, Vicente Falconi, prefaciador de uma das edições do livro do trio do 3G (aquele citado por Gutierrez na CPI das Americanas) e retratado em uma biografia prefaciada por um dos bilionários, Telles. Monteiro contou certa vez, para cerca de 600 participantes de um evento interno da Eletrobras, como fora do conselho para a diretoria. Tudo havia começado com um jantar com Pedro Batista Lima Filho. No repasto, escutara: “Tenho um projeto de dez anos para você”.
O engenheiro Lima Filho trabalhou de 1997 a 2006 no banco fundado por Guedes, o Pactual, e hoje é preposto do 3G. Foi sócio de Lemann, Sicupira e Telles na 3G Capital de 2013 a 2024. Ingressou no conselho de administração da Eletrobras, como indicado dos bilionários, após a desestatização. Antes disso, assinava em nome da 3G papéis dirigidos à Eletrobras com indicações para a diretoria e o conselho, por exemplo. Numa demonstração de aliança entre o grupo 3G, acionista antigo da Eletrobras, e sócios menores da elétrica, assinava ainda indicações feitas pela Maliko Investments, sediada em um paraíso fiscal, Delaware, nos Estados Unidos.
Consolo. Ao menos os gordos dividendos da companhia elétrica abastecem os cofres públicos – Imagem: Redes Sociais
A lei da privatização da Eletrobras, proposta por Bolsonaro, Guedes e Albuquerque e aprovada no Congresso em 2021, proíbe o governo de fazer pactos com acionistas minoritários. O acordo selado agora pelo governo com a companhia não mexe no veto. Recorde-se o desenho privatizador: a Eletrobras lançou ações no mercado, o governo não podia comprá-las e aí sua fatia no capital da empresa caiu abaixo de 50%. O naco está em 43%, é o maior dos sócios. Ainda segundo a lei, nenhum acionista teria voz e voto acima de 10%, não importa a quantidade de ações. Ao recorrer ao Supremo em maio de 2023, o governo pedia que o tribunal derrubasse o limite de voto de 10% e a proibição de pactos com minoritários. “Bandidagem”, tinha dito Lula publicamente sobre os termos da privatização.
Em fevereiro de 2024, com a negociação extrajudicial em curso, Lula tinha criticado diretamente aquele que, ao fim e ao cabo, é o manda-chuva da Eletrobras: “O grande gestor desse País era o cara da Lojas Americanas, o Jorge Paulo Lemann, que quebrou a loja dele e o sistema financeiro brasileiro. E depois é o Poder Público que não sabe governar”. Ikaro Chaves, diretor da Associação de Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras, foi da transição do governo Bolsonaro para o de Lula, pelo time do petista. Segundo ele, os acionistas da Eletrobras tinham ficado “desesperados” com o relatório da transição. Desde a eleição, Lula dizia que a venda tinha sido um “crime de lesa-pátria” e que tentaria devolver o controle da empresa ao Estado, caso voltasse ao poder. O relatório sustentava as posições dele. Chaves critica o desfecho da novela: “A maior parte do capital da Eletrobras é estrangeiro e a gestão é feita pelo pessoal responsável por uma fraude de 20 bilhões nas Americanas”.
A Eletrobras terá de injetar 2,4 bilhões de reais na usina nuclear de Angra 1
“Acordo indigno”, na visão da Associação dos Empregados da Eletrobras, a Aeel. Para Ronaldo Bicalho, pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acabou a esperança de o Estado gerir um ativo fundamental em tempos de crise climática e transição energética. A Eletrobras é dona de metade dos reservatórios de água. “Esse acordo é perverso, humilhante. É um réquiem (prece que se faz aos mortos), por isso o governo faz cara de paisagem e não veio a público falar a respeito”, diz. “A população já sofre com o preço da eletricidade. Com a privatização consumada, vamos ver explosão de preços, as consequências vão ser graves”, afirma Clarice Campelo, diretora do Instituto Ilumina, entidade que havia sido aceita pelo STF como colaboradora, pelo lado do governo, na ação sobre a Eletrobras. “O setor elétrico cobra preço político, o Lula sabe disso por causa do racionamento do Fernando Henrique.”
Pelo acordo, o governo conseguiu indicar três representantes para integrar o conselho de administração até 2027. O colegiado tem nove cadeiras e passará a dez. Os escolhidos lulistas são Hubner, Rondeau e Tolmasquim, os quais terão de se desligar das funções ocupadas atualmente em outras empresas. As indicações serão examinadas em assembleia geral de acionistas em 29 de abril. A criação da 10a vaga e a entrada de Hubner estão condicionadas à homologação do acordo pelo Supremo. O governo também terá um assento no conselho fiscal, que de quatro vagas passará a cinco. Neste posto estará Mantega. Com quatro integrantes em 15, sendo três em dez no conselho de administração, e proibido de se entender com minoritários, o governo terá poder e influência reais na companhia? A expectativa é que sim. Acredita-se que a bancada lulista será capaz de fazer a cabeça do restante da alta cúpula, ou de constrangê-la publicamente e perante o “mercado”, caso vote contra medidas das quais discorde. Para um observador atento da novela, o governo parece ter se dado por satisfeito com dividendos gordos que a Eletrobras paga e pagará. Com dinheiro, não com poder.
Disputa. A 3G de Sicupira, Lemann e Telles está no comando. Com o caso nas mãos de Nunes Marques, o governo viu-se forçado a aceitar acordo extrajudicial – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e Redes Sociais
O acordo tem um capítulo inesperado justamente nesse tema. A Eletrobras – leia-se: seus sócios privados – terá de injetar 2,4 bilhões de reais na usina nuclear de Angra 1. Será através da compra de debêntures a serem lançadas pela Eletronuclear, a dona da usina. Esta foi inaugurada nos anos 1980 e está perto do fim da vida útil. Para continuar a operar, precisa de conservação, modernização, eis o destino dos 2,4 bilhões. Sem o aporte, a Eletronuclear corre o risco de insolvência. A Eletrobras não queria se meter com Angra 1 e deixou isso claro nas negociações com o governo.
Por outro lado, o acordo libera a ex-estatal de apoiar a construção da usina de Angra 3, que também é da Eletronuclear. Na privatização, os compradores tinham assumido o compromisso de que a Eletrobras garantiria empréstimos para as obras da nova usina nuclear. Estas obras começaram em 2010 e foram interrompidas de 2015 a 2022. A conclusão delas requer que o Conselho Nacional de Política Energética, composto por ministros, decida sobre o preço futuro da energia produzida pela usina. Há um impasse no CNPE pois, na ponta do lápis, seria um preço muito alto. Pelo acordo, até que haja uma solução definitiva para Angra 3, a Eletrobras está amarrada ao projeto, mesmo tendo sido desobrigada de ajudar a financiá-lo. Ela é acionista da Eletronuclear. •
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O acordo possível’
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