Economia
O 1º de Maio na França
As sociedades clamam pela direção inteligente dos mecanismos profundos dos negócios privados


As manifestações na França contra a reforma da previdência ganharam maior intensidade e violência no 1º de Maio. O Dia do Trabalhador tampouco passou incólume em outros países europeus que apresentam os mesmos sintomas de degradação dos direitos sociais e econômicos dos menos afortunados.
Estão já distantes as ilusões “globalistas” que ocuparam os corações e as mentes ao longo de quatro décadas (com a palavra “globalista” presto uma homenagem ao nosso ex-chanceler do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo). A ideia de “desglobalização” ganhou a parada e ocupa hoje um enorme espaço no imaginário social.
Em seus momentos de glória e em seu sentido mais corriqueiro, a palavra “globalização” pretendia sintetizar a natureza benfazeja das mudanças que vêm ocorrendo na economia e na sociedade neste início de milênio: 1. A homogeneização do espaço econômico e a submissão crescente das malfeitorias da política à racionalidade imposta pelo mercado. 2. A aproximação entre formas jurídicas, os estilos de vida e os padrões culturais dos povos.
Essas concepções não conseguem esconder o seu código genético. São descendentes em linha direta do universalismo e do progressismo iluministas, cujos genes permitiram o nascimento e o desenvolvimento do liberalismo e do marxismo.
Para os liberais, a universalização das formas de convivência engendradas pelo mercado são as únicas capazes de preservar a liberdade do indivíduo contra as pretensões de despotismo do poder político. Para os marxistas, a universalização da forma mercadoria, realizada através do “natural” expansionismo capitalista, só poderá realizar suas promessas de liberdade igualdade e fraternidade quando sua dimensão despótica, particularista e destrutiva for domesticada pela ação política dos produtores diretos.
A globalização, em seu desenvolvimento concreto, apresenta-se, na verdade, como a “regeneração” das três tendências centrais e inter-relacionadas do capitalismo: 1. A mercantilização acelerada de todas as esferas da vida, inclusive daquelas até agora protegidas (amor, lazer, religião). 2. A universalização da concorrência. 3. A concentração do poder econômico e político.
Isto significa, em primeiro lugar, condicionar o acesso de todos os bens da vida ao impulso cego da acumulação de riqueza sob a forma monetária e abstrata, estreitando o espaço ocupado pelos critérios diretamente sociais, derivados do mundo das necessidades.
Em segundo lugar, a intensificação da concorrência capitalista ao impulsionar o avanço tecnológico impõe a redução do tempo de trabalho socialmente necessário e, ao mesmo tempo, acelera o processo de concentração do capital e da riqueza.
Isto reverteu as tendências a uma maior igualdade – tanto no interior das classes sociais quanto entre elas – observadas no período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70. Por isso, na era do capitalismo “turbinado”, os bem-sucedidos acumulam “tempo livre” sob a forma de capital fictício (títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza), enquanto, para os mais fracos, a “liberação” do esforço apresenta-se como a ameaça permanente do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
A disseminação das formas mercantis promovida pela expansão do capitalismo não se depara com obstáculos em seu incessante trabalho de reduzir os “conteúdos” da vida humana às abstrações da lógica do dinheiro. Pode-se tornar intolerável para os indivíduos – ou para a maioria deles – a sensação de que o seu cotidiano e o seu destino estão sendo invadidos pelas tropas de uma “racionalização” que sufoca o projeto iluminista da vida boa e decente.
O individualismo agressivo só deixa ao perdedor a opção de massacrar a própria auto-estima
As manifestações do Dia do Trabalhador revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido. Naturalmente, o desconforto dos que protestam contra a globalização – americanos, franceses, italianos, belgas, alemães e austríacos, entre outros – não vem sendo causado pela miséria que lhes rói o estômago, mas, sim, pelos danos causados à sua dignidade.
O individualismo agressivo, dizia um manifestante em Paris, não deixa ao perdedor, ao inferiorizado, senão a alternativa de massacrar a própria autoestima. “A individualização” do fracasso não permite ao derrotado compartilhar com os outros um destino comum provocado pela desordem do sistema social. O reconhecimento social é uma preciosa forma de remuneração não monetária. E essa retribuição se torna cada vez mais escassa quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio a uma eufórica comemoração do sucesso do indivíduo.
A perda da autoestima transfigura-se em ressentimento e daí as explosões de racismo, de xenofobia, de recusa do outro, seja ele quem for. Seria, no entanto, fácil dizer que o fenômeno se esgota na recusa da alteridade. Parece que a negação do outro também é a força que reúne esses coágulos sociais dispersos e desorientados e os transforma numa massa enfurecida e raivosa.
No seu célebre artigo O Fim do Laissez-Faire, Keynes vergastou a ideia de que a busca do interesse privado levaria necessariamente ao bem-estar coletivo. “Não é uma dedução correta dos princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo esclarecido leva sempre ao interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja, em geral, esclarecido.”
Ouço o papa Francisco: “A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Nem sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.
Keynes entendia que os efeitos negativos do darwinismo social devem ser neutralizados pela ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, pela atuação de “corpos coletivos intermediários”, tais como um Banco Central dedicado à gestão consciente da moeda e do crédito e empresas semipúblicas mais voltadas para o interesse coletivo que para a consecução do lucro.
A cura dos desatinos do capitalismo individualista deve “ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações”. Maynard insistia na “direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”, particularmente as decisões sobre a posse da riqueza marcadas pelo conflito entre o investimento criador de riqueza nova – leiam-se empregos, rendimentos e lucros para trabalhadores e empresários – e a acumulação de valores fictícios, estéreis, para a comunidade. •
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O 1º de Maio na França’
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