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Não é só a economia

A mobilidade social ganha impulso no Lula III, indica estudo inédito, mas pouco influi na melhora da popularidade

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Impaciência. O aumento da renda e do emprego não compensou, por ora, a frustração com a alta do custo de vida e os velhos entraves nos serviços públicos, como a saúde – Imagem: Acervo Prefeitura de Curitiba/SMCS e Rafael Atuchi/Ministério da Saúde
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O aumento do emprego, da renda e dos benefícios sociais nos dois primeiros anos do atual governo repetem o padrão do primeiro mandato do presidente Lula, de 2002 a 2006, mas o surpreendente descompasso entre os resultados apresentados e os baixos índices de aprovação da atual gestão parece jogar por terra a velha máxima “É a economia, estúpido”. Tema de inúmeros estudos no Brasil e no resto do mundo, o voto econômico é aquele que consagra, nas urnas, os políticos que tomaram medidas concretas para promover o crescimento da economia e o bem-estar da população, em especial o dos mais pobres.

Se esse efeito, real e palpável, não foi percebido pelos principais beneficiários e se, no mesmo período, a aprovação do governo e do presidente caiu, isso se deveu, entre outros fatores, a um duplo cerco político e ideológico, movido pelos interesses do rentismo e do agronegócio manejados pelo Congresso e pelo mercado, com apoio da mídia, avalia o economista Waldir Quadros, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp­ e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, em estudo sobre os primeiros dois anos do atual governo.

A recuperação recente da popularidade do presidente Lula, com a contribuição decisiva das agressões de Donald Trump à soberania nacional, das evidências da participação antinacional do bolsonarismo na escalada e da forte reação da sociedade, tende a reduzir, segundo Quadros, o descompasso entre o efeito benéfico das políticas públicas do governo na diminuição da desigualdade e no aumento da mobilidade e a sua percepção por parte da população.

Houve elevação em todos os escalões da classe média e o total de miseráveis recuou 33%

Além da elevação do emprego e da renda nos dois primeiros anos do atual governo, ocorreram avanços na mobilidade social e aumento da renda média familiar, com expansão das camadas médias e retração da pobreza extrema. A aprovação de Lula no primeiro mandato chegou a 54%, no segundo mandato decolou para 87% e, no atual governo, subiu de 39,8% em junho para 42,9% em agosto.

Com base na Pnad Contínua do IBGE, o estudo elaborado por Quadros mostra que, entre 2022 e 2024, a “alta classe média” cresceu 26,7%, de 19,1 milhões para 24,2 milhões de indivíduos, e a “média classe média” avançou 17,9%, de 32,8 milhões para 38,6 milhões. No mesmo período, o contingente classificado como “miserável” recuou 33%, de 19,3 milhões para 12,9 milhões. Em participação relativa, o País passou a ter, no ano passado, 11,2% na alta classe média, salto em relação aos 8,8% em 2022. A média classe média, que representava 15,1% do total no primeiro ano do atual governo, aumentou para 17,8% do total. A massa trabalhadora, no mesmo período, diminuiu de 25,8% para 24,4% e os miseráveis, de 8,9% para 6%. A renda média familiar total, por sua vez, cresceu 14,3%, de 5.416 reais para 6.190.

O recorte regional confirma a tendência de melhora, com crescimento da renda média familiar em todas as macrorregiões. O avanço da alta classe média foi mais intenso no Sul (+41,9%) e no Nordeste (+34,1%), seguido do Sudeste (+26,7%) e Centro-Oeste (+23,0%). No Norte, o crescimento foi de 11,9%. Detalhe: a média classe média aumentou acima da mediana nacional em todas as regiões, exceto no Sudeste. Já a redução do grupo de miseráveis foi generalizada, com destaque para o Norte (-40,8%), seguido de Sul (-31,1%), Nordeste (-32,6%), Centro-Oeste (-30%) e Sudeste (-26%).

As camadas sociais não foram estabelecidas por critérios meramente estatísticos ou por seus rendimentos declarados, sublinha o economista, mas por meio de uma abordagem mais próxima da sociologia das ocupações. “Em poucas palavras, buscamos definir as faixas de rendimentos declarados à Pnad que captavam as ocupações consideradas típicas de cada camada, começando por aquelas mais bem situadas.” Inspirado nos critérios adotados pelo famoso sociólogo estadunidense Wright Mills, autor do clássico A Elite do Poder, Quadros tomou como representativos da alta classe média os profissionais de nível superior, como médicos, engenheiros, professores universitários e pequenos e médios empresários.

Na classe média, considerou os profissionais como gerentes, professores de segundo grau, supervisores e técnicos especializados. A faixa de pobres intermediários, ou baixa classe média, incluiu os professores do ensino fundamental, auxiliares de enfermagem e auxiliares de escritório. Os miseráveis foram definidos como aqueles que, em janeiro de 2004, quando a metodologia foi concluí­da, ganhavam menos de um salário mínimo, piso constitucional. Os pobres, no estudo, são aqueles situados entre as ­duas últimas camadas mencionadas.

Quadros considera no estudo o peso de fatores de bem-estar imediato, como a criminalidade e os preços dos alimentos, que mantêm o custo de vida elevado e comprimem as expectativas. “Era natural, a gente nem questionava, melhorou a estrutura social, o governo ia bem na avaliação por parte da população. Agora, nesses dois últimos anos, é que a coisa saiu fora do padrão. É um aparente paradoxo, não?”

Adversários dos sonhos. A oposição bolsonarista, associada a Trump, jogou no colo de Lula uma bandeira eleitoral – Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil e Edilson Rodrigues/Agência Senado

O economista trabalha a base de dados e a metodologia que embasaram seu estudo há mais de 20 anos e pela primeira vez ele registrou esta desconexão. Normalmente, quando há uma melhora na mobilidade social, aumenta o reconhecimento do governo, a popularidade sobe e a aprovação, idem. E, ao contrário, quando a situação é de mobilidade social descendente, em queda, a popularidade e a aprovação recuam. “O que está acontecendo agora é um fenômeno novo, na minha percepção. As condições sociais vistas pela mobilidade social, ou seja, se os indivíduos estão melhorando suas posições na estrutura social, encontram-se em um ponto muito bom nesses dois anos, na comparação com o período anterior, mas isso não tem se refletido na aprovação do governo.”

O caminho escolhido para decifrar o enigma foi investigar além da estrutura social. “Foi preciso avançar nos campos da política e da ideologia, a resposta não estava na estrutura social. Tem também essa guerra da mídia, diária, constante. Isso pega”, sublinha o pesquisador. Um dado relevante, prossegue Quadros, é o antipetismo, muito forte na sociedade. Nos governos anteriores do PT, as políticas públicas voltadas para os interesses da maior parte da população proporcionaram dividendos políticos. Teve desenvolvimento, crescimento econômico, nos governos Lula I e Lula II. Não foi só política social, fundamental, contudo, por atingir as camadas de renda mais baixa.

O exame objetivo dos dados econômicos do primeiro biênio do atual governo mostra que está tudo bem. “Só que não é assim.  Houve um avanço na inflação dos alimentos, que pega os mais pobres, tem também a deterioração dos serviços públicos”, sublinha o professor da Unicamp. “O pessoal cansou de esperar. Até melhorar a mobilidade, vai demorar. Está tudo caindo aos pedaços. Para quem depende de ônibus, é uma tragédia.”

O achaque de Trump tem sido benéfico à imagem do governo

O problema é que o aumento da renda amplia a demanda por transportes e outros serviços e a falta de investimento público para elevar a capacidade dos serviços indica fortes limites daquela política. A insuficiência do investimento público, sabe-se, é um dos resultados mais danosos da imposição ao governo, pelo sistema financeiro, do dogma de austeridade fiscal. O mesmo impasse se repete nas áreas da saúde e da educação, que dependem do investimento público. “É óbvio que havia uma grande expectativa do povo de que, Lula entrando, a situação ia melhorar, ou resolver tudo isso. Mas não tinha condições.  E aí há uma decepção muito grande.”

Ao agronegócio, à finança e à mídia interessa “um governo fraco, que não possa escapar ao seu garrote”, dispara o autor do trabalho. Nessa situação, faltam recursos para desenvolver o País, implementando a reindustrialização nas bases contemporâneas e reestruturando profundamente as políticas públicas na saúde, educação, transporte, segurança, habitação e saneamento, que penam com o acúmulo de enormes carências. Em 2024, o governo gastou 950 bilhões de reais com o pagamento dos juros da dívida, mas apenas 216 bilhões com saúde e 111 bilhões com educação. A criminalidade prossegue avassaladora e há ainda os altos preços dos alimentos e a elevação do custo de vida em geral. “Ou seja, as condições de vida, que já não eram boas no início deste governo, não melhoraram tanto quanto se esperava e era necessário. As expectativas não se realizaram, daí a grande frustração.”

A direita capitalizou essas limitações, mas agora Lula “pegou o gancho dos ataques de Trump e está crescendo. Repare, crescendo por razões extraestrutura social”, prossegue o economista. Sobressaem, neste momento, a coerência e a clareza do presidente, tanto em relação à aposta nos Brics quanto na defesa de um mundo multipolar.

Os Estados Unidos, implacáveis na defesa dos seus interesses, não são os únicos atores relevantes. Há também a China, e as decisões de Trump estão acelerando a deterioração da posição dos EUA. Enquanto isso ocorre, os chineses vão “comendo pelas beiradas”.

No jogo da nova geopolítica, Lula mostra desenvoltura sob as ameaças dos Estados Unidos, ao contrário do que insiste em apresentar a mídia. Antes do encontro de Trump com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, no Alasca, Lula ligou para Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, e Xi Jinping, presidente da China. Putin telefonou para Lula antes e depois de se encontrar com o presidente dos EUA. A costura entre os líderes dos maiores países dos BRICS faz parte da resistência aos ataques contínuos desfechados pelo novo “imperador”.  •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não é só a economia’

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