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Não é não?

Lula resiste às pressões por cortes de gastos na área social e critica a Faria Lima, o Congresso e o empresariado

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Guerra Fria. Para o mercado, qualquer proposta do governo será ruim. O presidente pede mais estudos aos ministros Haddad e Tebet – Imagem: Miguel Schincariol/AFP e Ricardo Stuckert/PR
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O apelo do presidente Lula para o mercado e o Congresso “ajudarem a equilibrar a economia brasileira” demarca uma nova etapa da disputa relacionada aos cortes do orçamento público, exigidos pelo sistema financeiro e mídia com o objetivo de manter as benesses dos setores privilegiados à custa das parcelas mais frágeis da sociedade, dependentes das políticas públicas do governo para sobreviver com o mínimo de condições de vida e dignidade. Nesta nova fase, Lula reafirma seu papel central nas decisões, identifica o mercado como o centro do problema, não cede ao cronograma da Faria Lima e agregados e mobiliza o governo, as instituições do Estado e as empresas para discutir um programa de redução de gastos que não recaia, como sempre aconteceu, nas costas dos setores mais vulneráveis.

O petista subiu o tom. Disse conhecer bem a “gana especulativa e a hipocrisia” do mercado, perguntou se o Congresso vai aceitar reduzir as emendas de gastos e se “os empresários que vivem de subsídios vão abrir mão de parte deles para ajudar a equilibrar a economia brasileira”. No domingo, em entrevista à RedeTV, reafirmou suas posições: “Não cheguei na Presidência para fazer a economia decrescer”. Somente o crescimento econômico com a distribuição correta faz o País avançar, acrescentou. “As coisas vão dar certo. Eu vejo o mercado falar bobagem todo dia, não acredite nisso, eu já venci eles e vou vencer outra vez”, provocou.

O Congresso e o Judiciário, acrescentou o presidente, também têm responsabilidade e devem auxiliar o governo federal a “colocar as coisas em ordem”, cortando gastos nas suas respectivas áreas­. Lula condenou mais uma vez o montante de recursos disponível a senadores e deputados por meio das chamadas emendas parlamentares, desvinculadas de obras relevantes e das políticas públicas, e criticou o governo anterior. “Se as pessoas tivessem essa vontade de fazer corte de gastos no governo anterior, não existiria a situação que a gente herdou. As pessoas se esqueceram que foram gastos 300 bilhões de reais para que eles se mantivessem no poder.”

“O mercado fala bobagem todo dia, eu já venci eles e vou vencer outra vez”, disparou o presidente

Na segunda-feira 11, o cenário externo e a indefinição sobre gastos foram apontados como as causas da nova alta do dólar, para mais de 5,80 reais. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, relatou avanços na discussão sobre os gastos a serem cortados, embora tenha sugerido que o governo não permitirá ao mercado ditar o ritmo da tomada de decisão. Medidas negociadas com os ministérios foram encaminhadas à Casa Civil para redação dos instrumentos legais e uma nova pasta, a da Defesa, será convocada a participar do esforço de redução de gastos.

O governo trabalha sob pressão crescente, tanto do mercado e seus porta-vozes quanto da base aliada e de alas do governo e do Partido dos Trabalhadores. Um manifesto assinado pelo PT, PSOL, PDT, PSB, sindicatos e movimentos sociais defende que “o mercado e a mídia não podem ditar as regras do País” e contesta a tentativa de ambos de constranger o governo a cortar gastos com políticas públicas e investimentos. O documento rachou o PT e estimulou a proposição em favor do ministro da Educação, Camilo Santana, como substituto do ministro Haddad enquanto candidato preferencial à sucessão de Lula. A discussão abrangeu nomes alternativos para a Vice-Presidência, para desagrado do atual vice e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin.

As informações disponíveis até o momento dão conta de que Lula não aceita mudanças na regra de reajuste do salário mínimo e da indexação da Previdência, o que reforça o discurso dos ministros do Trabalho, Luiz Marinho, e da Previdência, Carlos Lupi, que prometem entregar os cargos caso a promessa do presidente não seja cumprida. A expectativa de cortes de gastos por meio da redução da indexação do Benefício de Prestação Continuada e da revisão das regras de acesso ao seguro-desemprego e ao abono salarial permaneciam no horizonte de possibilidades. Duas semanas atrás, cogitava-se limitar o ganho real do salário mínimo a 2,5% acima da inflação, o mesmo teto do arcabouço fiscal, e desvincular o abono e o BPC. Idêntico limite foi sugerido para moderar o crescimento dos pisos de gastos nas áreas da Saúde e da Educação. O corte, no início estimado pelo governo entre 30 bilhões e 50 bilhões de reais, é considerado insuficiente por algumas instituições financeiras, segundo os jornais.

Resistência. No governo Dilma, os pescadores foram prejudicados. Marinho e Lupi ameaçam pedir o chapéu – Imagem: Acervo/Ministério do Trabalho, Myke Sena/Agência Câmara e Fernando Frazão/Agência Brasil

Muitos perguntam por que Lula hesita em passar a tesoura nos benefícios indecentes, sem retorno para a sociedade, concedidos aos empresários pelos sucessivos governos. Um caso claro dos desastres à espreita caso sejam feitos movimentos nesse sentido foi a avalanche de reações duríssimas de sindicatos patronais em junho, quando Haddad encaminhou a Medida Provisória 1227 ao Senado para pôr fim em ao menos uma parte das ilegalidades patronais cometidas na arrecadação do PIS–Cofins. O objetivo era preencher o buraco na receita tributária provocado pela desoneração de 17 setores da economia, vigente desde 2012. A proposta de MP durou oito dias e sua derrubada resultou de mobilização patronal fulminante da indústria, do agronegócio e dos bancos.

Além de compensar a desoneração, a MP visava corrigir uma distorção na sistemática do PIS–Cofins que afastava a tributação de algumas empresas, e que em uma quantidade razoável de casos isso gerou uma situação de tributação negativa, isto é, o governo passava a ser devedor. Em relação à dupla de impostos, algumas empresas retinham dos empregados o valor da contribuição previdenciária, de 11% do salário, ficavam com o dinheiro e não repassavam à Receita. Situação esta que persiste.

O problema da desoneração das empresas só seria solucionado em setembro, com a aprovação, no Congresso, de uma retomada gradual da tributação. Esta foi uma das vitórias nada desprezíveis conquistadas pelo governo na recuperação da arrecadação tributária desmantelada no governo anterior, com a reconquista do poder do Executivo no Carf, conselho que julga recursos de contribuintes contra a Fazenda, a tributação de fundos offshore, a taxação de compras até 50 dólares no exterior e o fim da perda de arrecadação com o Perce, programa de auxílio ao setor de eventos que deveria funcionar apenas na pandemia, mas se tornara perene.

O governo tenta equilibrar-se entre o cerco do setor financeiro e as críticas da base

As declarações recentes de Lula sugerem que o governo não vai esperar a corda estourar com reduções indiscriminadas de gastos e forte compressão de políticas sociais que seriam uma reedição sombria dos cortes operados no governo Dilma Rousseff. Em janeiro de 2015, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, baixou medidas que dificultaram o acesso ao seguro-desemprego, ao abono salarial, à pensão por morte, ao auxílio-doença e ao seguro-defeso pago aos pescadores no período de proibição da atividade. A justificativa da punhalada fiscal foi combater fraudes e cortar 18 bilhões de reais nas despesas da União, parte do ajuste fiscal de, no mínimo, 60 bilhões considerado indispensável para atingir um ­superávit primário de 1,2% do PIB.

Há quem considere que as dificuldades do governo diminuiriam se o presidente Lula buscasse dialogar diretamente com a população para construir a aliança governista a partir da base. Segundo esta visão, unificar os trabalhadores facilitaria o trabalho do Executivo, no sentido de diminuir o protagonismo do Congresso, amplamente dominado pela oposição. O sociólogo Ricardo Musse, professor da USP, critica a perspectiva. “Eu discordo dessa interpretação. O que seria esse diá­logo com as bases? No limite, isso aponta para uma gestão no modelo chavista”, disparou em debate com economistas no programa Faixa Livre. “Lula nunca concordou com isso, nem quando ele apoiava o Chaves na Venezuela. Seria uma gestão avalizada por grandes manifestações de rua, de massa. Isso não deixa de gerar um certo caos no País, com interrupções, greves, que afetam a economia.”

Esse modo de governar, prossegue o professor, atrapalha o crescimento e a meta do governo Lula é o contrário, conquistar um próximo mandato e ter uma situação mais facilitada por um Congresso mais favorável a partir das eleições de 2026, por conta de um crescimento e de um controle da inflação. Se essas bases fossem mobilizadas, ocorreria um processo inflacionário forte, pois o setor produtivo não deixaria de reagir. Além do risco de perder o apoio que tem entre setores de centro, ou mesmo de centro-direita. “Portanto, esse programa que parte da esquerda defende, eu acho inexequível. Como alguém de esquerda, concordo com a maioria dessas críticas, mas acho que isso tem de ser relativizado. As críticas pontuais são muito bem-vindas e chegam a surtir efeitos, como no caso da reforma do ensino médio.” Musse refere-se ao forte movimento dos setores organizados das bases de apoio ao governo na área educacional que conseguiu barrar, ainda que de modo parcial, “uma reforma que era claramente antiesquerda”, aprovada no governo Michel Temer.

Em relação à reforma trabalhista, que Lula pretendia revogar, é preciso levar em conta a necessidade de ser aprovada pelo Congresso e os sindicatos elegeram poucos deputados. “Ninguém duvida que o presidente quer a revogação da reforma trabalhista de Temer e o fortalecimento dos sindicatos, mas é preciso que, do outro lado, haja uma movimentação mais política dos sindicatos. Eles estão presos apenas à luta econômica, não se envolveram o suficiente na luta política, que demanda um trabalho de base que eles atribuem ao governo Lula. Quem tinha de fazer essa mobilização nas bases, pressionar o Congresso e o governo, eram os sindicatos”, sublinha Musse.  •

Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não é não?’

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