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Mudança de rumo

Em condições muito desfavoráveis, o novo governo conseguiu alguns avanços, mas terá de ir além das ações de curto prazo

Os programas de transferência de renda e a tímida valorização do salário mínino não são suficientes para fazer a economia voltar a crescer, mas protegem as famílias de menor renda. O Minha Casa, Minha Vida deveria incluir a instalação obrigatória de painéis de energia solar fotovoltaica – Imagem: Roberta Aline/MDS e CDHU/GOVSP
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Apesar de encontrar o País estagnado, empobrecido, com fome endêmica, destituído de vários instrumentos de desenvolvimento e imerso em um processo de radicalização política, o governo Lula agiu rápido e conseguiu acumular feitos relevantes na área econômica em cem dias de gestão. Além disso, teve sucesso em abortar uma tentativa de golpe e resistiu, o tempo todo, ao terrorismo do mercado financeiro, enquanto negociava com um Congresso Nacional arredio a uma reposição do Orçamento de 2023.

O governo deveria, e talvez pudesse, fazer mais para desdolarizar o preço dos derivados de petróleo, coordenar políticas anunciadas pelos ministérios em relação ao empréstimo consignado e às passagens aéreas, além de ter um plano efetivo e bem estruturado para retomar o crescimento econômico sustentável. Todos reconhecem, porém, a dificuldade para a tomada de decisões em um governo de frente ampla e alvo de hostilidade por parte do mercado financeiro e da mídia alinhada a esse segmento. Uma hostilidade que se deve, em parte, ao fato de o sistema financeiro não ter, pela primeira vez em quase uma década, um dos seus na chefia da Fazenda.

Corrigir a rota da Lei Orçamentária Anual de 2023 foi um dos principais acertos do governo, avalia o economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp. “O Orçamento deste ano estava muito comprometido. O governo antecipou-se na transição, garantiu recursos para o Bolsa Família e anunciou que criaria uma nova regra fiscal. Essa rapidez na identificação da tragédia anunciada foi um ponto positivo, o governo conseguiu ganhar um bom tempo com isso.” Um segundo avanço a destacar, emenda, é o fato de o governo ter começado com medidas de curto prazo. Quando percebeu que a desaceleração econômica no segundo semestre de 2022 ia avançar com tudo neste ano, o governo conseguiu, com o Bolsa Família e o salário mínimo, canalizar para a economia um volume de recursos que pode ao menos segurar uma parte desse movimento de arrefecimento.

Além de buscar maior progressividade no sistema, a reforma precisa reequilibrar a tributação setorial

O gasto projetado com essas iniciativas soma cerca de 4 bilhões de reais no próximo trimestre, prevê o economista José Augusto Gaspar Ruas, também professor na Facamp. “Não é uma soma expressiva, não tem o poder de promover uma retomada do crescimento, mas serve como um anteparo para evitar que a previsível queda da atividade econômica prejudique mais as famílias de menor renda”, destaca. Além disso, acrescenta, esses recursos terão efeito multiplicador macroeconômico maior do que seria de esperar, porque, provavelmente, o dinheiro vai ser gasto inteiramente no País.

Como o emprego no fim do ano passado veio em trajetória positiva, é possível que essa renda adicional resulte em um gasto desejável para evitar uma queda mais intensa da atividade econômica. Ainda assim, esse incremento será insuficiente para assegurar o crescimento, sublinha Ruas. Entre as medidas importantes, o economista destaca a retomada da política de compra de alimentos da agricultura familiar, que em geral estava associada ao Bolsa Família e, a partir do governo Temer, foi destruída.

É preciso levar em conta que o governo iniciou seu mandato em um momento de baixa do ciclo econômico que teve início no Brasil no quarto trimestre de 2022, devido aos efeitos defasados da política monetária contracionista que começou em 2021, somados à desaceleração do ritmo da economia mundial, destaca a economista Júlia Braga, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense. Nesse contexto, avalia, o governo está sendo bem-sucedido, pois já foram anunciadas diversas medidas para reverter essa fase de baixa do ciclo econômico, como o aumento real do salário mínimo, a elevação do limite de isenção do Imposto de Renda para os que ganham até dois salários e a facilitação para a renegociação de dívidas das famílias, no programa Desenrola. “Isso tende a favorecer um aumento da renda real das famílias , uma perspectiva apontada no indicador de janeiro da pesquisa do emprego do ­IBGE”, sublinha Braga.

O Banco Central incorporou a hostilidade do mercado contra Lula – Imagem: Leonardo Sá/Ag.Senado

Da mesma forma, a professora da UFF vê como positiva a adoção do imposto sobre exportações de petróleo, pois, mesmo com toda a crise internacional, o preço em dólar do barril continua em patamar elevado, o que garante lucro extraordinário para o setor. Assim, o governo terá uma elevação importante de receita tributária para financiar as políticas sociais.

Outra iniciativa com algum efeito na dinamização da economia foi a negociação, com os sindicatos, de um aumento dos salários dos servidores públicos, há anos sem reajuste. É importante ressaltar também que o receio de diversos analistas, de ocorrer uma crise cambial com a posse do novo governo, não se concretizou. A taxa de câmbio oscilou nesses primeiros cem dias sem tendência de alta. “A percepção dos investidores internacionais parece benéfica ao Brasil”, ressalta Braga.

Além da retomada da política de valorização do salário mínimo e do programa Minha Casa Minha Vida, o início de uma avaliação sobre quais seriam as diretrizes e os limites de uma estratégia de desenvolvimento nacional autônomo, que passe pela centralidade da reindustrialização, da transformação tecnológica, também é um grande acerto nos primeiros cem dias de governo, destaca o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “Ainda estamos, porém, em um momento de diagnóstico. A sensação que tenho é de que há uma montagem de equipe, uma análise a aprofundar, um cuidado muito grande por parte do governo Lula de não errar. As equipes foram novamente montadas, eles estão ouvindo os interlocutores que debatem esses temas, cuja discussão foi interditada nos últimos seis anos. Esse cuidado, essa preocupação com o diagnóstico correto, é para fazer programas certeiros”, aponta Diegues.

Os primeiros cem dias do governo Lula na área econômica foram marcados por uma sensível mudança de rumo em relação ao governo Bolsonaro, marcado por austeridade fiscal, desmonte do Estado e submissão aos interesses do mercado financeiro. “O atual governo buscou reverter esse quadro e retomar o papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico”, aponta o economista Rafael Ribeiro, professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. Além do retorno do Bolsa Família, ampliado, ele destaca a suspensão temporária, por meio da PEC da Transição, da Emenda Constitucional 95, que congelava os gastos públicos por 20 anos e impedia investimentos em áreas sociais e produtivas, e a retomada dos investimentos públicos em infraestrutura, educação, saúde, ciência e tecnologia, estimulando a geração de empregos, renda e inovação tecnológica.

O Bolsa Família e o aumento do salário mínimo devem acrescentar 4 bilhões de reais à economia

O início do diálogo para implantação de uma reforma tributária progressiva, com o objetivo de reduzir a carga tributária sobre os mais pobres e aumentar a tributação sobre os mais ricos e sobre as grandes fortunas, é outro ponto sublinhado pelo professor da UFMG, assim como a reativação do diálogo com o Mercosul e a diversificação das relações comerciais com outros países e blocos regionais. Ribeiro chama atenção ainda para a manutenção parcial da desoneração de impostos sobre combustíveis no início do governo, que reduziu o custo de vida e ajudou a conter a inflação, e a revogação do decreto assinado no último dia do governo Bolsonaro, que reduzia pela metade a tributação sobre receitas financeiras das empresas, bem como a suspensão da privatização de estatais como Petrobras e Correios.

Um dos maiores desafios do governo neste momento, concordam vários economistas, é sair do curto prazo, de medidas destinadas a reparar ou reduzir os estragos promovidos pela gestão anterior, e passar para o planejamento e a implantação de medidas e programas de longo prazo.

Indispensável para a elevação do salário médio da economia e essencial à perenização dessa conquista, a política industrial é o centro das atenções em mais de uma área do governo. Diegues sugere uma política industrial que tenha resultado em curto prazo, busque ter legitimidade nos diversos estratos da sociedade, inclusive o empresarial, e seja factível.

O especialista propõe três pilares para a política industrial: crescimento da produtividade acima do PIB per capita, descarbonização e digitalização dos serviços públicos. As medidas para aumentar a produtividade seriam zerar o IPI para bens de capital produzidos no Brasil e elaborar um amplo programa de extensionismo produtivo para pequenas e médias empresas, casado com crédito do ­BNDES para essa finalidade.

A reativação do Mercosul, em Buenos Aires, foi um dos passos importantes da nova gestão – Imagem: Casa Rosada

No que diz respeito à descarbonização, Diegues propõe um programa específico do BNDES para financiar empresas, tecnologias e, inclusive, startups na área, a exemplo do que se fez nos casos do Pró-Soft e do programa de financiamento das usinas eólicas. Outras sugestões do economista são a obrigatoriedade de todas as casas e apartamentos financiados pelo Minha Casa Minha Vida terem painéis solares ou outra tecnologia de maior impacto, criação de um programa de incentivo a carros elétricos nos moldes do que foi feito com os carros populares, casado com atração de investimentos e internalização das capacidades produtivas.

Quanto à digitalização, o economista propõe a criação de um programa do ­BNDES, inspirado no modelo do ­Pró-Soft, para financiar atividades de digitalização da área da saúde, segurança, transporte, agronegócio, duplicar o número de egressos de cursos de formação em Tecnologia da Informação nas universidades federais e fazer com que 20% das vagas dos novos contratos do Fies do Prouni sejam para áreas de Tecnologia da Informação. Para Braga, além de uma reforma que garanta melhor progressividade, com mais ênfase em impostos sobre renda e patrimônio, é necessária maior equidade na tributação setorial, hoje a favorecer a mineração, o petróleo e a agropecuária, mas a punir a indústria de transformação. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mudança de rumo’

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