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Mordomo do rentismo

Para manter juros altos, Campos Neto recorre a visões obsoletas sobre o mercado de trabalho e exagera risco de inflação

Mordomo do rentismo
Mordomo do rentismo
Grilo falante. A redução do desemprego nem sempre tem impacto significativo sobre o consumo. As declarações de Campos Neto nos EUA chacoalharam os mercados – Imagem: Renato Luiz Ferreira e Raphael Ribeiro/BCB
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Economistas consideram que poucas vezes o figurino de mordomo do sistema financeiro serviu tão bem no presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, quanto nas semanas que antecederam a última reunião do Comitê de Política Monetária, na quarta-feira 8. Em discurso para investidores em Washington, em 17 de abril, durante evento patrocinado pela XP, condição pouco condizente com a propalada independência do BC, Campos Neto sublinhou que a situação de incerteza elevada pode resultar em um corte menor da taxa Selic.

A fala do presidente dispensou a consulta habitual aos diretores da instituição sobre uma eventual quebra da se­quência de reduções da taxa de 10,75%, em 0,50 ponto porcentual por reunião, definida pelo colegiado. O efeito do pronunciamento foi uma onda de reajustes das previsões de taxas de juro pelas instituições financeiras, de olho na provável freada no ritmo de cortes da Selic vislumbrada pelo presidente do BC, para apenas 25 pontos, e dúvidas sobre o grau de coe­são do Copom. “Alta volatilidade: falas de Campos Neto nos EUA chacoalham dólar, Bolsa e juros”, resumiu uma notícia do portal especializado Infomoney.

O ministro Fernando Haddad, da Fazenda, apelou para a razão e disse que o BC, nas suas decisões sobre os juros, não deveria “se assustar”. Haddad referia-se, especificamente, ao aumento significativo da geração de empregos no primeiro trimestre, com a criação de 719 mil vagas formais. O presidente do BC mostrou-se, contudo, inflexível e reafirmou em várias ocasiões que vê uma ameaça direta de elevação da inflação a partir do aumento do emprego.

O chefe do Banco Central desconsidera o debate mundial sobre o conceito de pleno emprego

As declarações sobre a suposta relação direta entre aumento do emprego e inflação levaram economistas a criticar, além da precipitação em Washington, o que parece ser uma falta de atualização de Campos Neto em relação ao debate econômico mundial. Não se sabe se por desconhecimento ou má-fé, ele repete interpretações obsoletas sobre o comportamento do mercado de trabalho e com isso exagera o risco de ocorrer um processo inflacionário fora de controle, se os juros caírem abaixo de 10%.

O atual patamar da taxa de desocupação, de 7,9% no primeiro trimestre, estaria sinalizando, segundo Campos Neto, uma aproximação do “pleno emprego”, o que colocaria em risco a estabilidade monetária. Uma situação de pleno emprego, vale lembrar, ocorre quando todos os trabalhadores com idade ativa encontram oportunidades de trabalho e só resta o desemprego voluntário, algo raro no capitalismo. Seria hora, portanto, segundo o presidente do BC e os executivos da Faria Lima, de pisar no freio da política de redução da taxa Selic, para evitar um aquecimento exagerado da economia brasileira.

A hipótese de Campos Neto desconsidera, entre outros pontos, o intenso debate mundial sobre o conceito de pleno emprego, que está muito longe de ser inquestionável. Deixa de lado também as peculiaridades da situação brasileira, com uma enorme quantidade permanente de trabalhadores que querem e precisam ocupar postos de trabalho, mas que acaba sendo excluída do cálculo da taxa de desemprego. Essas falhas fazem os leitores desavisados das interpretações de Campos Neto acreditarem que o País está se avizinhando­ do raro contexto do “pleno emprego”.

Apelo. Haddad pediu para o BC não se assustar, mas talvez não tenha sido ouvido – Imagem: Diogo Zacarias/MF

O economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp, ressalta que o argumento do mercado de trabalho aquecido é recorrente. Em 2014, no governo Dilma­ Rousseff, quando o desemprego estava entre 4,8% e 4,9%, o menor da série histórica do IBGE, e, inclusive, antes de a taxa chegar nesse patamar, argumentava-se que o mercado de trabalho aquecido poderia levar a uma aceleração da inflação. O mesmo debate ocorre hoje, só que com uma taxa de 7,9% de desocupação. O que significa que os economistas de mercado, os “Faria Limers”, estão elevando o piso da taxa de juros natural, aquela que não acelera a inflação. “Entre 2013 e 2014, esse piso era menor, defendia-se que abaixo de 5%, a inflação iria se acelerar. Eles apresentam uma série de argumentos para isso, mas é curioso observar que o ‘sarrafo’ da taxa de desemprego mínima, aquela que não acelera a inflação, está subindo”, dispara Abouchedid.

Um debate sempre ignorado é o da formalização, sublinha o professor da Facamp. Alguns economistas do mercado acham que há um processo de formalização do mercado de trabalho. Isso existe de fato, como mostra a evolução dos dados do Caged, com o aumento das contratações líquidas acima das expectativas, mas, quando se examina a composição da relação entre trabalho formal e trabalho informal, percebe-se que ela se mantém estável ao longo do tempo, segundo várias métricas. Ou seja, não houve uma mudança na composição da relação entre trabalho formal e trabalho informal. É importante considerar que há um processo de precarização da força de trabalho ao longo do tempo. Isso prossegue, mesmo com o mercado de trabalho em recuperação.

É importante considerar também, prossegue Abouchedid, que, quando se leva em conta o salário das pessoas contratadas e aquele dos trabalhadores demitidos, o salário dos últimos é maior do que a média salarial dos contratados. Ou seja, não há um processo de ganho, de aumento de rendimentos, no procedimento de contratação. O que ocorre é um movimento de deterioração da renda, ou seja, não necessariamente esse aquecimento do mercado de trabalho representa uma melhora dos rendimentos e da capacidade­ de consumo, quando se fala do aumento do trabalho formal.

Outro fator importante, aponta o economista, é que, quando se examina, na Pnad, o rendimento real médio do trabalho habitual, que é a principal fonte de renda da pessoa, fica claro que o rendimento médio do trabalho por conta própria, com CNPJ e também sem CNPJ, está nas máximas históricas. O rendimento médio do trabalho dos outros trabalhadores com carteira assinada também está subindo, mas não está nas médias máximas históricas. Ou seja, há um desempenho do rendimento do trabalhador por conta própria melhor do que aquele do trabalhador com carteira assinada. A conclusão é que os dados mostram um crescimento da formalização, mas não indicam uma mudança estrutural do mercado de trabalho, ou seja, a tendência à precarização prossegue, e isso deve ser levado em consideração nas análises do Banco Central.

A formalização está crescendo, mas persiste a tendência de precarização do trabalho no País

Os economistas Marcelo Manzano e José Dari Krein, do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp, identificam, em texto sobre o tema, “um amplo conjunto de argumentos que colocam em xeque as afirmações de Campos Neto” sobre a relação entre mercado de trabalho e inflação. O presidente do BC desconsidera, entre outros aspectos, que a inflação atual ainda expressa os choques de oferta que impactaram a economia mundial desde a pandemia e os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Deixa de levar em conta ainda que os níveis de utilização da capacidade instalada no setor industrial estão “confortáveis”, em 81,3%, e que a ocorrência de fenômeno similar, de baixo desemprego e inflação cadente, acontece também em diversos outros países.

O ponto capital da inconsistência de Campos Neto, para os economistas, é deixar de lado o fato de que, especialmente em países como o Brasil, com mercado de trabalho estruturalmente heterogêneo e precário, a taxa de desocupação apresenta limites para se estimar o quanto se está distante do chamado pleno emprego. Na economia brasileira, sublinham ­Manzano e Krein, poucos trabalhadores podem permanecer por muito tempo na condição considerada pelos institutos de pesquisa como de desocupados ou desempregados, isto é, aqueles que procuram emprego sem realizar qualquer atividade remunerada no período recente.

Os pesquisadores chamam atenção para o abismo entre a taxa de desocupação, de 7,9% no primeiro trimestre deste ano, e a taxa de subutilização, de 17,9%. “Ou seja, há expressivos 10 pontos porcentuais acima da taxa de desocupação, indicando a existência de quase 18 milhões de pessoas ou, aproximadamente, um a cada cinco trabalhadores, buscando ou precisando de emprego.” •

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mordomo do rentismo ‘

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