Economia

O perigoso consenso sobre os erros do governo Dilma

A administração da ex-presidenta não parece ter se equivocado mais do que outras em situações semelhantes. Pesou a crise política

Dilma realmente errou mais do que seus antecessores?
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Críticas, condenações, demonização da política econômica do governo Dilma têm surgido de todos os lados, tornando-se um consenso, exemplo de algo nefasto, a ser evitado de todo jeito.

De início, é indispensável considerar os dois mandatos separadamente, identificando como “governo Dilma” apenas o primeiro. No segundo mandato, o que imperou foi a ingovernabilidade: contestação dos resultados das eleições, protestos da classe média e instrumentalização da Operação Lava Jato, inflados pela mídia, adesão desesperada ao austericídio, com a convocação de Joaquim Levy para comandar a política econômica, pautas bombas no Congresso.

O erro relevante, atribuível ao governo no segundo mandato, foi a inabilidade de lidar com tamanha crise política, embora não se saiba o que uma grande habilidade política tivesse conseguido. Enfim, o governo Dilma aconteceu apenas em seu primeiro mandato.

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Muitos apontam uma suposta irresponsabilidade fiscal, com ênfase nas renúncias de receitas ou nos gastos públicos excessivos, ambos levando a déficits públicos que elevariam os riscos de crescimento explosivo da dívida.

As consequências desse eventual descontrole, em termos de perdas e desorganização financeira, teriam sido antecipadas pelos agentes privados, paralisando o dispêndio e lançando a economia em estagnação, com crescimento de apenas 0,5% em 2014, seguida da retração de 7% no biênio 2015-2016.

Uma avaliação mais cuidadosa compromete essa narrativa. É bastante esclarecedor partir de um processo que, ao mesmo tempo, foi o principal fator da elevação da qualidade de vida da população e da posterior inviabilização da continuidade dessa elevação, qual seja, o aumento contínuo dos rendimentos do trabalho.

O crescimento real do salário mínimo, em ambiente de forte demanda por trabalho, foi transmitido às curvas salariais das empresas, assim como ao setor informal, acima dos ganhos de produtividade em vários segmentos. Com isso, o retorno do capital foi comprimido, reduzindo os incentivos aos investimentos e até à produção corrente.

Certamente o Brasil pratica retornos muito altos para o capital, muito acima dos países desenvolvidos e de vários emergentes. Contudo, retornos mais civilizados no setor produtivo não se sustentam apenas com elevações nos custos unitários do trabalho, sem uma suficiente redução nos retornos das aplicações financeiras.

Essa foi a maior dificuldade enfrentada pelo governo Dilma, se agravando ao longo de seu primeiro mandato, à medida em que a contínua redução do retorno se disseminava entre os setores, pressionado pelas elevações dos rendimentos do trabalho e em comparação ao retorno alternativo das aplicações financeiras.

Em linhas gerais, as políticas para superar tal entrave seriam: (i) baixar a taxa básica de juros, para diminuir a concorrência das aplicações financeiras com o retorno dos investimentos em atividades produtivas; (ii) reduzir a tributação para compensar elevações dos custos unitários do trabalho; (iii) sustentar um crescimento na demanda agregada que possibilitasse, ao menos, um modesto crescimento enquanto essas restrições persistissem.

Em grande medida, essa foi a orientação geral do governo: (i) reduziu a taxa Selic, mas não conseguiu mantê-la mais baixa, pois precisaria ter flexibilizado o período de cumprimento das metas de inflação ou lançado mão de medidas compensatórias para evitar pressões inflacionárias de demanda, como calibrar o Índice de Basileia, alíquotas de recolhimento compulsório e limites das prestações das operações de crédito;

(ii) promoveu desonerações fiscais, mas de modo pouco restrito, em termos de setores importantes para o crescimento e geração de empregos, e sem exigir as devidas contrapartidas, sobretudo em investimentos e empregos;

(iii) a sustentação do crescimento da demanda agregada foi tentada com as referidas medidas de redução de juros e de impostos, associadas ao real mais desvalorizado e à expansão do crédito do BNDES, mas não suficientes para compensar a estagnação da demanda externa, em função da crise internacional de 2008, e dos investimentos públicos, com financiamento limitado pelas desonerações fiscais.

As restrições fiscais, resultantes de tais dificuldades, levaram ao descumprimento de metas fiscais, uma sinalização desfavorável para o mercado, e ao crescimento de 8,7% da dívida pública bruta em relação ao PIB, de 52% para 56%, nos nove últimos meses do primeiro mandato. Expansão aceitável em uma política fiscal anticíclica.

Pouco antes, também nos nove meses de dezembro de 2008 a agosto de 2009, no enfrentamento aos efeitos da crise financeira internacional, o mesmo indicador cresceu 11,2%, de 55% para 61%, tendo retornado aos níveis anteriores em 12 meses sem impedir a recuperação da economia, que cresceu 7,5% já em 2010.

Análises contrafactuais são complexas e incertas, mas é difícil acreditar que apenas com os erros de política econômica ocorridos e sem a crise política iniciada logo após a eleição de 2014 o PIB fosse apresentar tamanha redução nos dois anos seguintes, com os investimentos produtivos sofrendo a ainda mais dramática queda de 19%.

Algumas situações não podem ser entendidas com a clareza e tempestividade necessárias para que as decisões, melhores e na medida certa, sejam tomadas. Tais condições, ao lado de pressões e interesses incompatíveis com o melhor para todos, levam os governos a cometer erros em suas políticas.

Nesse sentido, o governo Dilma não parece ter errado mais que outros em circunstâncias similares. É preciso refletir e avaliar melhor a sua política econômica, de modo a qualificar e relativizar os julgamentos, facilitando a adoção de várias medidas similares, sempre que julgadas as melhores. 

* Doutor em Economia pela Universidade de Brasília (UnB) e conselheiro do Cofecon

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