Economia
Metástase no mercado
O colapso das Lojas Americanas agrava, mas não é o único responsável pela crise crônica da economia brasileira


Os bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Fernando Telles, donos da empresa de investimentos 3G Capital e grandes acionistas da Lojas Americanas, são apontados como culpados pela crise que afunda a varejista, espalha-se pelo comércio e afeta o mercado de crédito no País, mas não são os únicos responsáveis pelos abalos. Menos visada pela mídia, mas letal para a economia, a taxa de juros mais alta do mundo teve papel determinante no enfraquecimento de inúmeras empresas nos últimos dois anos e esta é a principal explicação para as proporções que a crise assumiu. A taxa atual de 13,75% ao ano foi estabelecida pelo governo Bolsonaro em agosto do ano passado e implicou aumento de 0,25 ponto porcentual sobre os juros anteriores, já elevados, completando nada menos que 11 altas consecutivas desde agosto de 2020, quando era de 2% ao ano.
Subir os juros com a justificativa de combater uma inflação que não era de demanda, mas causada pela alta das commodities e por problemas nas cadeias de produção mundiais, foi um equívoco, atestam vários economistas e pesquisadores. São indiscutíveis, entretanto, os efeitos devastadores dos juros altos sobre as empresas. De dois anos para cá, enquanto as grandes empresas, que têm estrutura de capital, conseguiram se manter, as micro, pequenas e médias enfrentaram situação cada vez mais grave. O faturamento e a geração de caixa não aumentaram, mas o juro passou de 7% para quase 19%, considerando a taxa dos Certificados de Depósito Interbancário mais 5% (os CDI são utilizados em operações entre bancos e acompanham a taxa básica de juros da economia, a Selic). Esses números pioraram desde o início da crise da Lojas Americanas. Não há empresa que resista.
O feitiço dos juros extorsivos pode voltar-se contra os próprios bancos
Neste momento, a crise que há cerca de dois anos abala as micro, pequenas e médias empresas chegou aos grandes grupos e a situação ficou ainda mais complicada. CVC, Marisa, Light, Tok&Stok, Gol e Azul tentam renegociar bilhões em dívidas. Lojas Americanas, Oi e outras 90 companhias pediram à Justiça recuperação judicial em janeiro, alta de 37%, em comparação com o número de casos no mesmo mês do ano passado, e de 90%, em relação aos dados de dois anos atrás, segundo o Serasa. O número de inadimplentes voltou a crescer e chegou a 65 milhões em janeiro. Os quatro maiores bancos provisionaram 9,6 bilhões nos seus balanços para cobrir perdas com a Lojas Americanas, calculou a agência Infomoney.
Fatos recentes deixaram claro que, ao afetar mais de 40 mil fornecedores e encarecer o crédito bancário, o problema da Americanas expôs fragilidades acumuladas por inúmeras empresas, causadas pela taxa de juros exorbitante, encolhimento do poder de compra dos consumidores, falta de investimento público e privado e fraqueza da economia. Há evidências abundantes de uma debilidade generalizada.
Alvos. A culpa recai sobre Sicupira, Lemann e Telles, mas a crise tem raízes mais profundas – Imagem: Editora Sextante
A demanda por crédito em janeiro caiu 8% em comparação com dezembro, conforme o Índice Neurotech de Demanda por Crédito, que mede mensalmente o número de solicitações de financiamentos nos segmentos de varejo, bancos e serviços. A maior queda, de 30%, foi registrada no setor de varejo, seguido pelo de serviços, com 27%. A Federação dos Bancos prevê uma retração de 0,8% no saldo total de crédito em janeiro, após 11 meses seguidos de expansão. As concessões de crédito devem recuar 11,7%, segundo a Federação dos Bancos. Tanto a Neurotech quanto a Febraban ressaltam o grande peso do componente sazonal, com retração típica das operações para as empresas nesta época do ano.
O cenário resulta, em parte, de política de governo, sugere um estudo econômico do Banco do Brasil sobre as perspectivas de 2023. “O movimento recente de desaceleração das carteiras de crédito, tanto ligadas às empresas quanto às famílias, já era esperado em nosso cenário-base, devido às condições financeiras mais apertadas – em especial, a elevação da taxa básica de juros, o aumento do endividamento e comprometimento de renda das famílias e o aumento da inadimplência”, diz o relatório do início do ano.
Há uma forte reprecificação do crédito e um aperto das condições financeiras após a explosão do caso Americanas, escreveu o economista José Roberto Mendonça de Barros. Pesa também o fator político. Segundo o ex-ministro Guido Mantega, o Banco Central utiliza a taxa básica de juros como instrumento de pressão para forçar a permanência da política fiscal de austeridade radical imposta pelo teto de gastos, que o governo substituirá por um novo arcabouço fiscal, em sintonia com as experiências mundiais mais avançadas, a ser anunciado em março.
O passivo da Lojas Americanas é estimado em 48 bilhões de reais
O feitiço dos juros extorsivos pode, porém, voltar-se contra os seus maiores beneficiários, isto é, os bancos, uma vez que os riscos no mercado de crédito e a redução das concessões de financiamentos tendem a abalar ainda mais a atividade econômica e levar o Banco Central a reduzir a Selic antes do esperado, preveem algumas instituições financeiras.
Alguns dados confirmam a situação de anemia econômica das empresas de menor porte. Segundo levantamento do Sebrae e do IBGE, 91% dos empresários não repassaram aos clientes os aumentos de custos de energia, aluguel, condomínio e matéria-prima, entre outros, desde o fim da pandemia, com receio de perder mercado.
A extração de recursos das empresas por meio dos juros transborda o universo corporativo e se materializa em uma exaustão de recursos do conjunto da sociedade, sugerem alguns dados da Federação do Comércio de São Paulo. As empresas pagaram 103,1 bilhões de reais em juros no primeiro semestre do ano passado, e as famílias brasileiras, 284,1 bilhões no mesmo período, segundo cálculos da entidade. O desembolso das famílias para pagamento de juros cresceu 18% em dois anos e hoje representa 12,6% da renda, sublinha a FecomercioSP. Nesse contexto, não causou surpresa o apoio de 76% da população às críticas do presidente Lula aos juros altos, como identificou uma pesquisa do Instituto Quaest.
Selic. A taxa de 13,75% ao ano acionou o alarme na construção civil – Imagem: Prefeitura de Petrolina/GOVPE
O valor pago em juros pelas empresas é duas vezes maior que o volume de recursos que deveriam ser liberados pelo Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, o Pronampe, até o fim do ano, aponta a FecomercioSP. Trata-se de uma linha de crédito para pessoas jurídicas criada em maio de 2020 pelo governo federal para auxiliar empreendedores durante a pandemia do Covid-19.
A cada nova descoberta de artimanhas contábeis, o problema da Lojas Americanas aumenta. As estimativas sobre o passivo da empresa foram revisadas de 42,6 bilhões de reais para 48 bilhões, segundo a agência Reuters. Cabe destacar que as dívidas reconhecidas pela companhia no balanço somam apenas 20 bilhões. O número de credores subiu de 7.720 para 9.460, aponta novo cálculo. Os dados definitivos só serão conhecidos quando a companhia apresentar o relatório sobre as dívidas, até 23 de março.
A proposta da varejista, de aumento de capital de 7 bilhões de reais em dinheiro, recompra de dívidas de 12 bilhões e conversão de débitos de cerca de 18 bilhões, parte em capital e parte em dívida, foi rejeitada pelos bancos, que consideram necessária uma capitalização de ao menos 15 bilhões. Lemann, Sicupira e Telles emprestaram 1 bilhão de reais à Americanas em janeiro e são acusados pelos bancos de mostrar pouco interesse na solução do problema. Segundo o ranking da revista Forbes, a fortuna em dólares de Lemann é de 15,5 bilhões, a de Teles chega a 10,5 bilhões e a de Sicupira, 8,5 bilhões, números que dão ideia do potencial de ampliação do conflito em andamento, entre a Americanas e os bancos.
Nos EUA, a SEC detalhou as práticas da 3G Capital na Kraft Heinz
Os desdobramentos da crise atingem os fundos imobiliários, como deixa claro um relatório da Levante Ideias de Investimentos. “No caso dos fundos imobiliários”, diz o estudo, “a situação é mais delicada, já que alguns deles possuem parcelas significativas de seus rendimentos atreladas ao aluguel de imóveis para a Americanas. Pelo menos oito fundos possuem exposição expressiva à varejista, o Max Retail, o GGR Covepi, o XP, o VBI Logístico, o Bresco Logístico, o Vinci Imóveis Urbanos, o RBR Log – Fundo de Investimento Imobiliário e o CSHG Logística. O Max Retail, o GGR Copevi e o XP são os fundos mais expostos à varejista, que respondem por 34%, 19% e 8% de suas receitas, respectivamente”, chama atenção o relatório da Levante, que diz não saber como o processo de recuperação judicial pode afetar a capacidade da Americanas de pagar seus aluguéis.
Falta muito a esclarecer sobre as manipulações contábeis feitas na Americanas. A empresa tinha entre 15 bilhões e 17 bilhões de reais em financiamentos a fornecedores feitos por meio de bancos, e que, em vez de constarem como dívida financeira no balanço, foram lançados como dívidas com fornecedores. Além disso, esse volume de dívida bancária não estava totalmente refletido na conta de fornecedores. Cada vez que a Americanas pagava juros aos bancos por conta dos financiamentos a fornecedores, a contabilidade da empresa subtraía esses juros do total daquela conta. Com uma despesa financeira artificialmente menor, os lucros divulgados ao longo de anos, que foram a base para o cálculo dos dividendos distribuídos aos acionistas, estavam superavaliados.
No limite. Para 76% dos brasileiros, Lula está certo ao confrontar Campos Neto, do BC, para reduzir os juros – Imagem: Raphael Ribeiro/BCB
As instituições do mercado ainda não chegaram a um consenso quanto à forma específica da adulteração dos registros contábeis. “O que aconteceu na Lojas Americanas repete o que se viu no escândalo da Kraft Heinz, que consistiu em prática de fraude por manipulação de informações contábeis”, ressaltou o banco BTG em uma petição ingressada na Justiça dois dias após o estouro da crise, no mês passado. As ações da 3G Capital na controlada Kraft Heinz foram documentadas pela Security Exchange Commission, dos EUA. Em 2013, a 3G Capital comprou a Kraft, em associação com o empresário Warren Buffett, operação que mais tarde deu origem à Kraft Heinz. Em 2019, a companhia anunciou perdas de 15,4 bilhões de dólares e um investidor processou a empresa, alegando que os executivos da 3G Capital se envolveram em negociações com informações privilegiadas. Pouco depois, revelou-se outro rombo, de 1,2 bilhão. Em 2021, os reguladores federais dos EUA anunciaram um acordo com a empresa sobre o que classificaram como “anos de declarações financeiras falsas”.
“De 2015 a 2019, a Security Exchange Comission alegou que a Kraft Heinz estava usando todo o arsenal de práticas contábeis obscuras para suavizar seus resultados, que incluíam reconhecimento de descontos não ganhos de fornecedores, manutenção de contratos de fornecedores falsos e enganosos e registro de economia de custos onde não havia nenhuma. A empresa, que concordou em pagar 62 milhões de dólares em multas, relatou deliberadamente lucros falsos e depois se gabou dos supostos ganhos para a comunidade de analistas, de acordo com a SEC”, destaca David Gelles em livro sobre Jack Welch e seus pupilos diletos da 3G Capital. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Metástase no mercado “
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