Economia

assine e leia

Mais uma gambiarra

O governo improvisa para controlar os preços e arrisca criar prejuízo de 100 bilhões de reais aos estados

Mais uma gambiarra
Mais uma gambiarra
Guedes. Habituado a chutar números, ele prevê um custo de 25 a 50 bilhões de reais - Imagem: Marcelo Camargo/ABR
Apoie Siga-nos no

Acuado pelos erros que cometeu e agravou, o governo Bolsonaro parece ter abandonado qualquer pretensão de coerência estratégica para manter a economia funcionando e atira para todos os lados, sob a pressão de pesquisas eleitorais desfavoráveis e dificuldades conjunturais crescentes. O mais recente improviso desse vale-tudo, voltado apenas para proteger os interesses dos poderosos e dos amigos, é a tentativa de controlar os preços da gasolina, do etanol e do diesel até dezembro com alterações tributárias, sem mexer na política desastrosa dos Preços de Paridade de Importação de combustíveis, em vigor desde 2016. Com o PPI, as refinarias passaram a cobrar pelos combustíveis como se estivessem importando os produtos, isto é, começaram a praticar o preço internacional acrescido­ do frete até o Brasil, do custo portuário, do frete até a refinaria e dos seguros.

Acompanhado do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do ministro da Economia, Paulo Guedes, Bolsonaro propôs na terça-feira 7 zerar o ICMS do diesel e do GLP e compensar os estados e municípios em até 17% pelas perdas, além de anunciar que o governo pretende zerar o PIS-Cofins e a Cide da gasolina. Guedes disse que a perda de arrecadação dos estados deverá custar de 25 bilhões a 50 bilhões de reais e que a compensação poderá ser feita com a receita da venda da Eletrobras, deixando claro que a privatização da estatal, estimada em torno de 25 bilhões, quando vale, no mínimo, dez vezes isso, servirá apenas para pagar seis meses de redução do preço dos combustíveis. O ICMS proporcionou uma arrecadação de 652 bilhões para os estados em 2021, o equivalente a 86% do total.

O improviso do governo gerou enorme confusão. A primeira reação partiu de governadores, que procuraram a imprensa para protestar contra a medida e mantiveram várias reuniões com Pacheco, na tentativa de modificar o projeto. O presidente do Comitê Nacional de Secretários da Fazenda (Comsefaz), Décio Padilha, disse que a proposta provocará perda de 100 bilhões de reais para estados e municípios e piora da situação de escolas, hospitais, assistência social e segurança pública. O Centro de Cidadania Fiscal viu a medida como “estelionato eleitoral” por furar o teto de gastos, uma declaração que só comprova a inviabilidade desse limite fiscal para a gestão econômica de qualquer governo. A reação do chamado mercado foi imediata e resultou na elevação das taxas de juro de longo prazo e alta de 1,64% na cotação do dólar, que fechou a 4,87 reais.

A atual política de preços favorece apenas importadores, donos de refinarias e os acionistas da Petrobras

Outro aspecto criticado é a insufi­ciência da redução eventualmente obtida diante da defasagem acumulada em relação aos preços internacionais, de 20% no caso da gasolina e de 14% para o diesel, calculam os importadores. Os críticos apontam ainda a tendência de alta dos derivados devido à guerra na Ucrânia e à reabertura da China.

O ICMS responde por 24% do custo da gasolina na bomba e por 11,6% do preço do diesel. O autor do projeto encaminhado à Câmara, deputado Danilo Forte, do União Brasil, disse que sua proposta pode reduzir a gasolina de 9% a 12% e a conta de luz em, aproximadamente, 11% para o consumidor. Além de eleitoreira, a proposta de Bolsonaro deixa intactos os interesses dos únicos beneficiados pela PPI, que são os importadores de combustíveis, os compradores de refinarias, os especuladores do mercado e os acionistas preferenciais da Petrobras, a abocanhar o lucro da estatal.

Cloroquina na bomba. A proposta pode piorar a situação para o consumidor – Imagem: Assembléia Legislativa/GOVRR

Em seu voo cego, Bolsonaro e Guedes não querem saber do projeto da oposição em tramitação no Senado. Apresentado pelo senador Jean Paul Prates, do PT, a proposta cria uma Conta de Estabilização de Preços de Combustíveis, formada com recursos públicos e administrada pelo Executivo para compensar as variações dos preços internacionais do petróleo e derivados. No início, os recursos da conta viriam principalmente da tributação das exportações de petróleo bruto. Prates retirou do projeto a menção expressa ao imposto de exportação por considerar que, caso fosse mantida, ele “não avançaria” no Congresso, dada a correlação de forças desfavorável. O mesmo argumento reforça, entretanto, as posições, dentro e fora do PT, contrárias ao envolvimento do partido no assunto, por implicar o compartilhamento do ônus da busca de soluções para os preços dos combustíveis com o governo, que foi quem criou o problema.

Paulo Cesar Ribeiro Lima, ex-engenheiro da Petrobras e consultor aposentado da Câmara e do Senado, é favorável à criação de um imposto de exportação de óleo bruto com base na Lei 9.716, de 1998, com uma alíquota básica de 30%. Ele defende o mecanismo da conta de estabilização, mas não acredita no projeto de Prates. “Acho que esse projeto não vai resolver e, pior, vai dar margem para o governo regulamentar de forma inadequada”, opina Lima.

Em busca de melhores condições de aprovação, a proposta de criação de uma conta de estabilização de preços de combustíveis deixou de lado, como fonte de recursos, a intenção de obter receita de um imposto sobre a exportação de petróleo bruto, passou a contemplar a possibilidade de utilização de royalties da exploração de petróleo e, por fim, de recursos do Tesouro, em uma espécie de degeneração do espírito original. “Eu acho que esse foi o caminho seguido. A proposição inicial sofreu modificações de modo a reduzir o peso de uma tributação que incidiria sobre a etapa do setor que mais ganha recursos com a subida de preços”, sublinha o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp.

O projeto de Bolsonaro gerou forte reação de governadores e do mercado

Quando o preço do petróleo sobe, explica Ruas, exportadores e produtores de petróleo ganham rios de dinheiro. A ideia é retirar um dinheiro dali para subsidiar um controle de preços. Esse era o mecanismo pretendido para subsidiar uma estabilização dos preços. “Na hora em que se joga isso para dentro do orçamento, cria-se, contudo, um novo problema que, no fundo, é sem solução. Todos os países que usaram essa alternativa tiveram de caminhar no sentido contrário”, dispara Ruas.

A taxação das exportações de óleo cru tem repercussões que transcendem a política de preços. A Petrobras vem se desfazendo dos ativos de refino e distribuição, focando no setor de produção de petróleo. Se houvesse aquela tributação, a estratégia de privatização de empresas subsidiárias seria punida. “O imposto sobre a exportação de petróleo bruto criaria um incentivo para a Petrobras voltar ao setor de refino”, resume Ruas. Entre os aspectos positivos de se taxar a exportação de óleo cru destaca-se o estímulo ao refino no País, concorda Lima.

Renúncia. O plano é torrar a maior empresa de energia para cobrir o buraco do ICMS – Imagem: PPI/GOVBR

A compra de refinarias só passou a interessar ao capital privado quando a própria Petrobras liquidou o seu monopólio no refino e vendeu a BR Distribuidora. Essa estrutura permitia desacelerar o repasse do preço dos derivados entre a extração nos poços de petróleo e a venda no posto de serviços. O desmantelamento da estrutura verticalizada da Petrobras cria, no entanto, enormes dificuldades para suavizar os repasses ao consumidor, como mostra o exemplo da refinaria de Mataripe, antiga Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, a primeira a ser privatizada, adquirida em março pela Acelen, criada pelo fundo Mubadala Capital, dos Emirados Árabes. O preço do diesel produzido pela Rlam costumava ser um dos mais baixos do País. No mês passado, foi o mais alto, 7,66 reais o litro, segundo a ANP.

“Nenhum país no mundo produtor de petróleo e com refinarias adota esse modelo de política de preços. É um suicídio econômico, tecnológico e social. Mas tudo foi autorizado e contava com o desprezo da opinião pública, manipulada pela mídia desde 2015 com a falácia de que a Petrobras tinha problemas de caixa e sua dívida seria impagável”, denunciam a Associação dos Engenheiros da Petrobras e o Clube de Engenharia em manifesto. “Importantes e indispensáveis ativos foram vendidos por preços indecorosos sem qualquer contestação.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mais uma gambiarra “

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo