Economia
Mais Mercosul, menos Milei
O bloco é mais forte e perene do que os delírios ultraliberais do argentino


Num mundo em crescente turbulência, com forte desarranjo das cadeias globais de valor, acentua-se a tendência de se investir em redes regionais de produção, amparadas em políticas estatais de desenvolvimento sustentável. Nesse cenário, o Mercosul, fundado em 1991, adquire importância ainda mais estratégica. Por isso, é inacreditável a tentativa do presidente argentino de extrema-direita, Javier Milei, de torpedear o bloco.
Merece toda a repulsa sua tentativa de minar o projeto de integração ao propor negociações bilaterais com terceiros países, solapando a Tarifa Externa Comum e a União Aduaneira. A despeito dos números positivos e das conquistas ao longo de mais de três décadas, ele não percebeu que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, agora reforçados com a presença da Bolívia, só têm vantagens com a união e a integração. As cifras comprovam o quão lucrativo é, sob todos os aspectos, incrementar a integração. O bloco é uma das maiores economias do mundo, com um Produto Interno Bruto de 2,8 trilhões de dólares, o que o coloca como a sétima maior economia do planeta.
O tratado estabelece três obrigações para a criação do mercado comum: a TEC, aplicada a bens importados de países extrabloco, a adoção de política comercial comum em relação a terceiros países e blocos extrazona e a coordenação de posições em foros econômicos comerciais regionais e internacionais, dando ao Cone Sul uma voz comum em defesa dos países membros. Graças à integração, o comércio intrazona cresceu mais de 1.000% em três décadas. Em 2021, superava os 40,6 bilhões de dólares. Em 1991, era em torno de 4 bilhões ao ano. Excetuando-se a Bolívia, recém-integrada, os parceiros do bloco ocupam o quarto lugar das exportações do Brasil, que constitui o mercado número 1 das exportações da Argentina, Paraguai e Uruguai.
Infiltrado. O dito “libertário” presta um serviço a quem quer acabar com o bloco – Imagem: Angela Weiss/AFP
A irresponsável proposta de Milei, questionada por amplos segmentos econômicos e políticos da Argentina, prejudicaria todos os outros sócios do bloco. A integração reforçou a capacidade econômica e industrial dos países membros, que ganharam voz nos foros internacionais. Do ponto de vista estritamente bilateral, lembre-se que o Brasil é o maior comprador de produtos argentinos nas últimas três décadas. Neste ano, até agora, a Argentina posicionou-se em quarto lugar no ranking de exportadores para o mercado brasileiro, atrás de China, Estados Unidos e Alemanha. Por outro lado, ocupa o terceiro lugar na lista dos países que mais compram do Brasil, só perdendo para a China e os Estados Unidos, segundo a Câmara Argentina de Comércio e Serviços.
Dados do ano passado, citados pelo jornal portenho Página12, indicam que há na Argentina 2.580 empresas (7% do total) que exportam ao Brasil, ante 668 (2% do total) que vendem à China. É impossível menosprezar a importância da parceria econômica e comercial com o Brasil. Na prática, significaria intensificar o desemprego na Argentina, com o enfraquecimento do bloco.
Recuar para apenas uma área de livre-comércio prejudicaria todos. A manutenção da união aduaneira é crucial. Ela é o pilar fundacional do bloco. É com ela que são construídas outras dimensões do que prevê o Tratado de Assunção. Assim evoluímos em áreas como a livre circulação de cidadãos, criamos instituições supranacionais como o Parlasul e estabelecemos uma cidadania comum. É com orgulho que portamos o passaporte do Mercosul quando visitamos outros países. O processo de integração vai muito além da desgravação tarifária.
O que Milei não sabe é que a união aduaneira teve o objetivo de integrar economias, as instituições e os cidadão do Cone Sul num projeto estratégico. Os mentores do processo, de forma visionária, almejaram a construção de sociedades prósperas, desenvolvidas, democráticas. Desconfianças históricas e desconhecimentos mútuos foram superados sob a égide do Mercosul.
Quanto mais integração, melhor para o Cone Sul
A identidade comum garantiu ao bloco negociações no plano internacional de forma mais fortalecida, competitiva. Um só país tem menos força do que cinco. Grandes blocos ou potências econômicas, naturalmente, gostariam de fazer negociações comerciais com países individualmente. Isso não interessa aos integrantes do Mercosul.
A União Aduaneira assegurou ao bloco uma única economia, no que se refere à relação econômica extrablocos. Como dizia o falecido embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos artífices do Mercosul, os neoliberais, como Milei, não têm visão estratégica e preferem acordos atomizados de livre-comércio, seguindo a velha cartilha de acordos ditados por países desenvolvidos. Guimarães lembrava que o embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os Estados Unidos e a China, ambos com interesses distintos, mas com foco na sedução de países do subcontinente para propostas de acordos de livre-comércio bilaterais. Ora, se os participantes do Mercosul ainda têm aspirações de desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social elevado, não se pode abrir mão da identidade comum firmada com a União Aduaneira.
Hoje, é um imperativo o investimento em cadeias regionais de produção, visando o desenvolvimento sustentável, tanto no aspecto ambiental como social. Por óbvio, isso seria impensável num cenário desagregador, ultraliberal, como o proposto por Milei. Seria um prejuízo para todos os membros do bloco. Áreas de livre-comércio exacerbam as assimetrias entre as nações, geram desemprego e informalidade nas economias menos estruturadas. Edificam muros, não pontes, para unir os povos e compartilhar o desenvolvimento econômico e social.
O Mercosul obteve avanços extraordinários. Trata-se de um comércio qualitativamente superior. A maior parte das exportações do Brasil para o bloco e dos outros sócios para o mercado brasileiro, em especial a Argentina, é de produtos industrializados. Em contraste, as exportações do Brasil para a União Europeia e a China são de produtos primários.
Flexibilização e modernização, como quer Milei, são fantasias neoliberais. O Mercosul é uma conquista dos povos do Cone Sul e deve ser fortalecido. Quanto mais integração, melhor para todos os sul-americanos.
*Deputado federal por Minas Gerais, integrante do Parlasul e líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados.
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mais Mercosul, menos Milei’
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