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Limpa, de fato

A descoberta de reservas de hidrogênio “branco” marca uma nova era na corrida energética

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Imagem: iStockphoto
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Há mais de uma década, a aldeia de Bourakébougou, no oeste do Mali, é movida por um fenômeno de energia limpa que em breve poderá varrer o mundo. A história começa com um cigarro. Em 1987, uma tentativa fracassada de perfurar em busca de água liberou um fluxo de gás inodoro que um fumante infeliz descobriu ser altamente inflamável. O poço foi rapidamente tampado e esquecido. Quase 20 anos depois, perfuradores em busca de combustíveis fósseis confirmaram a descoberta acidental: centenas de metros abaixo da terra árida da África Ocidental existe uma abundância de hidrogênio “branco”, o tipo que ocorre naturalmente.

Hoje ele é usado para gerar eletricidade “verde” para as casas e lojas de ­Bourakébougou. Mas os geólogos acreditam que os reservatórios inexplorados de hidrogênio branco nos Estados Unidos, na Austrália e em partes da Europa têm o potencial de fornecer ao mundo energia limpa em escala muito maior. Isso teria grandes implicações para o clima. O hidrogênio surgiu como uma ferramenta na corrida para reduzir as emissões de carbono. O gás de queima limpa pode substituir os combustíveis fósseis em fábricas, usinas elétricas e residências com zero emissões de gases de efeito estufa.

A pegada? Normalmente, o hidrogênio é produzido a partir de combustíveis fósseis, num processo que gera emissões de carbono (o chamado hidrogênio “azul”), ou por meio de eletricidade e água renováveis (hidrogênio verde), o que é muito caro. A descoberta de fontes naturais resolve ambos os problemas. O tamanho do prêmio pode ser enorme: de acordo com o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS na sigla em inglês), mesmo que uma pequena fração do hidrogênio sob a superfície da Terra possa ser recuperada, provavelmente seria suficiente para durar centenas de anos.

Durante a pandemia de Covid, Luke Titus, fundador da Gold Hydrogen, revelou uma descoberta histórica de hidrogênio no sul da Austrália. Titus revisava antigos documentos do Serviço Geológico do Sul da Austrália, que incluíam uma análise de dados de agricultores locais que procuravam petróleo com varetas de adivinhação. Uma perfuração feita em 1921 na Ilha Kangaroo produziu até 80% de hidrogênio. Outra, na vizinha península de Yorke, chegou perto de 70%. Um século depois, a Gold Hydrogen começou a explorar a região e planeja começar a perfurar em outubro.

A empresa é uma das dezenas de ­startups de hidrogênio que esperam que Bourakébougou possa ser neste século o Oil Creek da Pensilvânia – local onde a primeira plataforma de petróleo comercial, em 1859, iniciou uma indústria que modificaria radicalmente o curso do progresso humano. Os defensores da florescente indústria de hidrogênio incluem Bill Gates. O investidor bilionário, por meio de sua empresa Breakthrough Energy, foi supostamente um dos cinco financiadores a investir cerca de 90 milhões de dólares na Koloma, empresa com sede no Colorado que busca hidrogênio natural ao longo do ­Midcontinental Rift System (sistema de falha mesocontinental) dos Estados Unidos.

Totalmente natural, a fonte zeraria a emissão de gases de efeito estufa

A falha tectônica de 1,9 mil quilômetros que atravessa a América do Norte também é alvo da Natural Hydrogen Energy, startup que deve começar o trabalho de exploração ao lado da australiana HyTerra no Kansas no fim deste mês.

Na Europa, que continua assolada por uma crise de abastecimento de gás decorrente da invasão da Ucrânia pela Rússia, o hidrogênio branco foi descoberto na França, na bacia de mineração de ­Lorraine. E uma empresa britânica, a ­Getech, começou a adaptar um ­software desenvolvido para encontrar petróleo para localizar depósitos de hidrogênio. O verdadeiro potencial do hidrogênio branco dependerá das descobertas desses projetos iniciais, diz Philip Ball, pesquisador da Universidade Keele e geocientista da área. “Estamos à beira de um novo entendimento, mas se isso representará uma nova fonte de energia séria é uma grande questão”, pondera. “Muitos geólogos não entendem dessa área. Há um sentimento de ‘bem, se o hidrogênio estivesse lá, as grandes empresas de petróleo não o teriam encontrado?’ Mas elas não estavam procurando por ele. A maioria das descobertas de hidrogênio foi por acaso.”

Permanece a incerteza sobre a forma como o hidrogênio se forma nas profundezas da Terra, exatamente como ele migra para a superfície e qual a melhor forma de extraí-lo. As respostas serão cruciais para entender o custo de produção do hidrogênio branco. As estimativas sugerem que seria mais barato que o hidrogênio de combustíveis fósseis ou água, mas há muitas ressalvas.

As empresas petrolíferas, entre elas a Total e a Engie, na França, e a Repsol, na Espanha, deram passos modestos no hidrogênio branco. O interesse dos maiores players do setor é limitado, mas os ­resultados dos pioneiros caçadores de hidrogênio podem mudar a realidade. Se o hidrogênio branco corresponder à onda atual, as principais empresas de petróleo poderão entrar no mercado, como seguiram os primeiros “aventureiros” do gás de xisto para o fracking. Desta vez, os resultados também poderão ser um bônus para o clima.

Talvez a questão-chave seja se as companhias petrolíferas estariam dispostas a apoiar as buscas. Pense numa gangorra, diz Ball: pode haver resistência em auxiliar uma indústria a florescer se o seu sucesso significar a redução do valor das reservas multitrilionárias de gás fóssil. Mas pode haver um ponto de inflexão, onde perder se tornaria um risco financeiro. “Eles não querem ativos ociosos, mas o hidrogênio branco pode canibalizar seu mercado principal. Em que ponto a gangorra se inclina?” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Limpa, de fato’

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