Economia
Juntando as peças
A empresa volta a distribuir gás de cozinha e começa a se recompor do desmonte no período Temer–Bolsonaro


A retomada da distribuição de gás de cozinha pela Petrobras é o mais novo sinal de uma ampliação gradual das atividades da companhia, ao que tudo indica no rumo de uma recomposição da estrutura verticalizada que permitiu à estatal alcançar a posição de maior empresa do Brasil e uma das principais petrolíferas do mundo. A decisão, tomada em reunião do Conselho de Administração, segue o sentido inverso ao do desmonte promovido nos governos Temer e Bolsonaro, com privatização de refinarias, distribuidoras, gasodutos e reservas de petróleo e gás, quase sempre a preço de banana. Além disso, esse movimento fortalece a autonomia econômica do Brasil para fazer frente ao tarifaço e à intromissão política do governo dos EUA.
Em um passado não muito distante, a estatal mantinha-se como uma empresa “do poço ao posto”, capaz de prospectar, explorar, transportar, refinar e distribuir combustíveis, com enorme impacto na redução dos preços ao consumidor. É isso que se pretende resgatar. A iniciativa ecoa ainda uma reclamação do presidente Lula diante da manutenção de preços altos do gás para o consumidor final, apesar da sua redução nas refinarias da Petrobras, e visa conter a disparada provocada pela privatização da Liquigás, empresa de distribuição que era controlada pela Petrobras, no governo Bolsonaro.
Na quarta-feira 13, Lula lançou o Plano Brasil Soberano, para proteger exportadores e trabalhadores dos efeitos das sobretaxas dos EUA. A medida inclui financiamento de 30 bilhões de reais às empresas prejudicadas pela tarifa de 50% nas exportações ao mercado estadunidense. Nas últimas semanas, o presidente também anunciou a decisão de manter a soberania nacional sobre o patrimônio de terras-raras cobiçadas pelo governo dos EUA e o encaminhamento ao Congresso de um novo projeto de regulamentação das big techs. O governo reafirmou ainda a manutenção do caráter público do Pix, uma pedra no sapato das empresas estadunidenses de cartão de crédito Visa e Mastercard, dominantes no mundo.
O Brasil produzia 65% dos fertilizantes consumidos pelo agro nos anos 1990. Hoje, importa 85%
Não se sabe, contudo, se o governo está preparado para enfrentar uma possível ampliação dos ataques de Trump ao País, das áreas comercial e judicial para as esferas financeira e cambial, com sanções semelhantes às impostas à Rússia desde o início da guerra da Ucrânia, com sequestro de reservas cambiais depositadas no exterior e exclusão dos bancos do País dos sistemas de pagamentos interbancários Swift e chips. “Espero que alguém esteja pensando nisso”, comenta Luiza Peruffo, professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
O mundo inteiro parece atento à afronta fora do comum dos EUA ao Brasil. Na segunda-feira 11, o jornal Financial Times apontou que a “disputa inédita” entre Brasil e EUA “pode agravar-se facilmente” e que os entraves entre Brasília e Washington são “sem precedentes”.
O retorno da Petrobras à distribuição de gás de cozinha “parece uma tentativa de reversão da desestruturação do período Temer e Bolsonaro, para reconstrução de uma empresa integrada, isto é, com um perfil estratégico menos voltado ao investidor de curto prazo, ainda que os investimentos indiquem apenas marginalmente questões de transição energética”, ressalta o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp.
A decisão soma-se à redução da distribuição de dividendos, reorientação para o investimento local e capacidade de agir sobre a dinâmica do mercado local, sublinha Ruas. Para o economista, a Petrobras pode cumprir o papel de evitar uma desaceleração mais intensa da economia. O movimento da empresa tem, porém, “uma série de implicações competitivas e, como era de se esperar, empresas privadas se manifestaram contra”.
Autonomia. A Petrobras reativou fábricas de fertilizantes. Com a privatização da Liquigás, em 2020, o preço do gás de cozinha deu um salto – Imagem: Prefeitura de Umuarama/PR e Ricardo Stuckert/PR
Apesar da queda expressiva nos preços internacionais do petróleo, a Petrobras elevou em 32% seus investimentos no primeiro semestre, em especial nas atividades de exploração e produção, e reduziu em 24,8% a remuneração dos acionistas, na comparação com igual período do ano anterior. As estimativas são do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o Ineep.
Entidades ligadas a empresas estrangeiras do setor petrolífero reagiram com pessimismo ao retorno da Petrobras à distribuição de gás de cozinha e disseram temer a retomada também da distribuição de gasolina e diesel, que era feita pela estatal até a privatização da BR, atual Vibra.
A retomada segue outras iniciativas da Petrobras no rumo de maior autonomia energética e produtiva do País. No ano passado, a empresa reativou a fábrica de fertilizantes Ansa, no Paraná. Em abril, reassumiu outras fábricas na Bahia e em Sergipe e pretende prosseguir no sentido de ampliar a produção nacional desse insumo. A Petrobras planeja também aumentar a produção de diesel S-10 em 120 mil barris por dia em 2025, além de expandir a produção de diesel renovável para 10,6 bilhões de litros anuais até 2027, com investimentos em diversas refinarias.
O tempo necessário para a maturação dos investimentos significa que o País demorará alguns anos para reduzir sua dependência de importações tanto de fertilizantes quanto de diesel. Em 1990, antes da abertura econômica e privatizações promovidas por FHC, o Brasil produzia 65% dos fertilizantes consumidos pelo agronegócio. Hoje, importa 85%. No caso do diesel, 30% são provenientes de outros países.
Atualmente, cerca de 60% dos fertilizantes e 23% do diesel são importados da Rússia, condição que coloca o Brasil na linha de tiro de prováveis novas sanções em uma escalada que não mostra indícios de arrefecimento. A penalidade aplicada por Trump à Índia, por importar petróleo russo, foi a duplicação da tarifa de importação, de 25% para 50%.
A “disputa inédita” entre Brasil e EUA “pode agravar-se facilmente”, alerta o Financial Times
A urgência do fortalecimento das empresas brasileiras e a afirmação da soberania ficam evidentes a cada novo ataque de Trump. E o País precisa preparar-se para desdobramentos inusitados do tarifaço. “Se a aplicação de megatarifas é justificada politicamente, o que impediria Trump de impor sanções monetárias e financeiras ao Brasil, como fez com a Rússia? O que aconteceria se os EUA resolvessem congelar as nossas reservas no exterior? Ou excluir os bancos brasileiros do sistema Swift? São coisas que até pouco tempo atrás seriam impensáveis, mas espero que tenha alguém em Brasília pensando nessas possibilidades”, sublinha Peruffo.
Há mais diferenças do que pontos em comum nas situações que antecederam as sanções impostas pelos EUA à Rússia e ao tarifaço no Brasil. No caso da Rússia, destaca a economista, havia a guerra, um fato concreto. No caso do Brasil, alegou-se um déficit inexistente, e também o processo judicial contra o ex-presidente, “um motivo bem esquisito, para dizer o mínimo”, além da intenção de investigar o Pix.
“A justificativa usada contra países com os quais os EUA têm déficit é ruim, mas existe. No caso do Brasil, o motivo é inexistente, não há déficit algum. Quanto ao processo de Bolsonaro, a alegação é politicamente motivada. É isso que causa estranheza e deveria servir de alerta para a possibilidade de outras sanções”, ressalta a economista da UFRGS. “O mundo aguarda com apreensão os próximos passos. Quem vem depois do Brasil? E no nosso país, o que vem após o ataque ao Judiciário? Qual é a desculpa que vão usar?”, destaca Peruffo, que ocupou o posto de economista sênior na Embaixada do Reino Unido em Brasília.
Em uma situação internacional em que todos dependem do dólar, os EUA têm a faca e o queijo. Na verdade, eles têm o poder unilateral de “cortar” a possibilidade de outros países usarem a moeda que eles mesmos emitem no sistema de pagamento que eles dominam. É a ideia do poder estrutural de Washington no sistema financeiro internacional.
Um “privilégio exorbitante”, nas palavras do economista Barry Eichengreen, professor de Economia e Ciência Política na Universidade da Califórnia, autor de um livro com esse título. Na publicação, o economista descreve como, em 2008, em meio à mais grave crise financeira em 80 anos, o governo dos EUA conseguiu tomar emprestado grandes somas a juros baixos porque os estrangeiros perceberam que o dólar era a moeda mais segura em um momento de grande turbulência. E novamente, na primavera de 2010, quando a volatilidade financeira atingiu o pico, os investidores fugiram para o mercado mais líquido, o de títulos do Tesouro dos EUA, reduzindo o custo dos empréstimos para o governo norte-americano e, com ele, as taxas de juro hipotecárias disponíveis para as famílias norte-americanas. “É disso que se trata o privilégio exorbitante.” •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Juntando as peças’
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