Economia
Jabuticaba milionária
Beneficiados pelos juros de capital próprio resistem à taxação, em meio a manobras contábeis


Privilégio exorbitante de um grupo minúsculo, a isenção de tributação de juros sobre capital próprio, assim como aquela de fundos fechados e offshore, é apontada pelos seus beneficiários, bem instalados no topo da pirâmide da desigualdade de renda, como um direito. Acabar com essa benesse consistiria, segundo esse público, um risco para a economia, com a fuga de investimentos para outros países. As lamúrias eram esperadas, mas as justificativas não param em pé e mal conseguem disfarçar o fato de que benefícios como esses resultam de leniência tributária injustificável da qual muitas empresas fazem mau uso, segundo o Ministério da Fazenda.
Um Projeto de Lei encaminhado pelo governo extingue a figura dos juros sobre capital próprio e enterra, portanto, a respectiva isenção tributária. Para entrar em vigor em 2024, a medida precisa, entretanto, ser aprovada pelo Congresso até o fim do ano. O governo calcula que a isenção de tributos sobre juros de capital próprio resulta em perda anual de arrecadação de 10,5 bilhões de reais. Um valor abaixo dos 13,3 bilhões de outra erosão fiscal resultante de condescendência tributária, a não tributação de fundos fechados pertencentes, na maior parte, a um punhado de famílias de milionários, mas superior aos 7 bilhões que o Fisco também deixa de arrecadar sobre os recursos mantidos por 0,04% dos brasileiros em paraísos fiscais. No total, uma bolada de 39 bilhões de reais. Os dados são oficiais e constam da apresentação sobre o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2024.
São beneficiadas com isenção de juros sobre capital próprio empresas obrigadas a declarar o Imposto de Renda com base no lucro real, entre as quais se destacam aquelas com faturamento anual acima de 78 milhões de reais e todas as instituições financeiras, além de outros subgrupos. Os JCP, destacam os técnicos do Ministério da Fazenda, são pagos aos detentores dos maiores rendimentos do País. Entre 2016 e 2020, em torno de 2,8 milhões de pessoas físicas receberam essa remuneração, o equivalente a menos de 2% da população brasileira. O valor anual total recebido por esses beneficiários foi ao redor de 30,6 bilhões de reais.
A isenção é possibilitada pela leniência tributária injustificável
Os juros sobre capital próprio implicam a redução de carga tributária porque existe um jogo, explicam advogados especializados. Trata-se de uma dedução sobre uma base que paga 34% no total, formada por 15% do Imposto de Renda, mais 10% do adicional para firmas que faturam acima de 20 mil reais por mês e 9% da contribuição social. Quando a empresa deduz os juros sobre capital próprio, ela ganha, ou deixa de tributar, o equivalente a 34%. Já o sócio que recebe o JCP tem de pagar 15%. A empresa deduz 34%, o sócio paga 15% e, no fim, para o governo, restaria uma diferença de cerca de 19%. Em outras palavras, se o governo extinguir o JCP, arrecadará os 19%, que correspondem ao valor distribuído hoje aos acionistas.
A isenção dos juros sobre capital próprio é, segundo o Ministério da Fazenda, um instrumento contábil de redução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e da CSLL que não existe em nenhum outro país, com distribuição aos sócios e sem necessidade de aporte de recursos na empresa. Outro efeito nocivo da existência dos juros sobre capital próprio é a redução da base de cálculo da arrecadação, o que fragiliza a alegação empresarial de que o Brasil tem a maior carga tributária do mundo, com 34% do PIB. Esta é apenas a taxa nominal, enquanto a efetiva encolhe ainda mais quando se levam em conta, além dos JCP, as várias isenções que beneficiam as companhias. “Na prática, os JCP são uma via de mão dupla: os investidores saem felizes por receberem uma remuneração extra de acordo com o desempenho do seu investimento e as empresas os utilizam como artifício contábil para pagar menos impostos. Isso porque os pagamentos dos juros sobre capital próprio, na linguagem contábil, são considerados como despesa, por serem realizados antes do lucro líquido”, diz a plataforma de investimentos Toro, em comunicado dirigido a investidores.
Entidades empresariais publicaram comunicados enfáticos em defesa daquilo que a Toro denomina “artifício contábil”. A extinção dos juros sobre capital próprio é prejudicial aos investimentos no Brasil, reclamou a Confederação Nacional da Indústria. O fim dos JCP deveria ter contrapartidas, defendeu a Febraban, a federação dos bancos. Sem uma medida alternativa, o custo de capital deverá aumentar, alertou a Associação Brasileira das Empresas de Capital Aberto. Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o mecanismo foi criado para atrair investidores no mercado de ações e facilitar autofinanciamentos com recursos dos sócios, ao estimular a distribuição de lucros pelas empresas, mas diversas companhias zeram os lucros artificialmente para transformá-los em juros sobre capital próprio.
Sem brechas. Nos países integrantes da OCDE, aquele clube tão admirado pela elite brasileira, esse tipo de isenção não prospera
Haddad detalhou, em declaração à imprensa, autênticas acrobacias contábeis. “Há empresas que não estão tendo mais lucro. Empresas muito rentáveis, mas que não declaram lucro e, portanto, não pagam Imposto de Renda de Pessoa Jurídica. O que elas fizeram? Transformaram lucro artificialmente em juros sobre capital próprio. Não pagam nem como pessoa jurídica nem como pessoa física.”
A exposição de motivos do projeto que veda a dedução do lucro real e da base de cálculo da CSLL enumera motivos abundantes para a adoção da medida. Após 25 anos da sua introdução, diz o texto, não há evidências de que a adoção dos JCP reduza o endividamento e aumente investimentos, conforme argumentaram à época seus defensores. A introdução do dispositivo funciona, na prática, como um sistema de dividendos dedutíveis, além de estimular as empresas a buscarem financiamento externo para remunerar os acionistas. Há ainda uma elevação na razão dívida-capital, em vez da redução esperada, sublinha a exposição de motivos.
Os juros sobre capital próprio são pagos a apenas 2,8 milhões de beneficiários
As críticas prosseguem. Os JCP não induzem o reinvestimento, pois consistem em forma de remuneração aos acionistas que concorre com o reinvestimento de lucros na empresa e com sua disponibilidade financeira para quitação de dívidas, uma vez que ela deve dispor de seu patrimônio para pagar os acionistas ou, de forma ainda mais prejudicial, contratar empréstimo para pagá-los, caso as taxas de juro e de retorno sejam vantajosas. “Além disso, constatou-se que a regulamentação vigente relativa à determinação de sua base de cálculo permite o aumento irregular do valor do benefício por meio de artifícios contábeis”, ressaltam os autores da análise. Outro aspecto relevante, cabe acrescentar, é que a heterogeneidade de condições e de dispositivos, no País e no exterior, inviabiliza as comparações de alguns advogados e entidades empresariais que afirmam ser comum, em países europeus, a adoção de normas semelhantes àquela dos juros sobre capital próprio no Brasil.
Na tentativa de manter viva a possibilidade de praticar o artifício contábil, os endinheirados resistem, e os embates no Congresso em torno do assunto tendem a ser intensos. João Camargo, presidente do Grupo Esfera Brasil, fez publicar artigo com críticas às medidas governamentais para aumentar a tributação dos super-ricos. Camargo enumera insucessos de alguns países que aumentaram as alíquotas para esse grupo e diz que os empresários deveriam ser admirados pelo seu sacrifício em prol do crescimento econômico. Segundo esse raciocínio, é injusto pedir mais a quem contribuiu tanto, mesmo sendo o Brasil um dos países mais desiguais do mundo e dos pouquíssimos que isentam dividendos.
A solidariedade dos ricos, que Camargo parece expressar, está na contramão do enorme esforço feito pelos governos para restringir a fuga de receitas tributárias para outros países. Em julho, representantes de mais de 130 nações reuniram-se em Paris para avançar na aplicação de parte de um acordo tributário inovador coordenado pela OCDE. O objetivo das mudanças é atualizar as regras internacionais para que as cem maiores companhias do mundo paguem mais impostos onde fazem negócios. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
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