Economia

Investidores ‘anjos’ mostram ser possível colher dividendos com projetos sociais e ambientais

A reação de variados setores da sociedade ao avanço de pautas antissociais, antidemocráticas e antiambientais vem mudando também o mercado

Os certificados do MST garantem retorno de 5,5% ao ano, acima da poupança (Foto: Thiago Giannichini)
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A bandeira do Movimento dos Sem Terra por si só bastaria para chamar atenção para a emissão de Certificados de Recebíveis do Agronegócio de sete cooperativas de agricultura familiar, até agora distantes do mercado de capitais. Mas a suspensão da operação pela Comissão de Valores Mobiliários, sob a alegação de que o prospecto da oferta não mencionava a ligação daquelas cooperativas ao movimento social mais simbólico do País, despertou ainda mais interesse pela oferta de 17,5 milhões de reais em CRAs e fez com que se inscrevessem mais que o triplo do mínimo necessário para fechar a captação. No fim, só 1.518 investidores levaram o papel, remunerado a 5,5% ao ano, pouco acima da variação da poupança (4,3%).

“É uma operação emblemática porque quebramos dois paradigmas: quem recebe os recursos são assentados da reforma agrária que atuam na agricultura familiar e qualquer um podia investir, dado o valor mínimo exigido muito baixo, apenas 100 reais”, afirma João Paulo Pacífico, CEO e fundador do Grupo Gaia, que inclui a securitizadora responsável pela estruturação da emissão dos certificados, coordenada pela corretora Terra Investimentos. “Foi possível furar a bolha de privilégio, que é forte no mercado financeiro”, comemora Pacífico, para quem a suspensão temporária da oferta, em julho, obedeceu à pressão do setor ruralista, contrariado com a iniciativa sui generis de acessar o mercado de capitais para financiar a produção de 13 mil agricultores familiares. “Se o MST é um movimento, não tem CNPJ, por que deveria constar no prospecto?”, questionou o executivo na resposta à CVM, que acabou por liberar a operação. 

Em postagem no Linkedin, Pacífico relata a história toda e agradece, entre outros, aos sócios do escritório Veirano Advogados, ao amigo e economista Eduardo Moreira, idealizador e investidor da operação, além do MST, “por acreditar na gente”. Conta também que houve resistências e desistências na trajetória da operação, mas insiste: “Não dá mais para olhar apenas o retorno financeiro. Com isso, a rentabilidade, muito embora seja boa, pode ficar um pouco abaixo de uma operação tradicional”. Faz questão de ressaltar ainda que não se trata de “doação, é um investimento responsável”. 

‘Não dá mais para só olhar o retorno financeiro’, diz João Paulo Pacífico, do Grupo Gaia

É o caso de outras iniciativas da Gaia de forte impacto social que resultaram de uma parceria com a Din4mo Ventures, como a emissão de debêntures de 5 milhões de reais para financiar a reforma de moradias populares na periferia de São Paulo, no âmbito do Programa Vivenda, voltado a famílias de baixa renda. Só que, diferentemente da operação das cooperativas agrícolas, a captação teve como alvo investidores profissionais, que movimentam mais de 10 milhões de reais no mercado financeiro.

Izzo, da Vox, lida com grandes investidores. Alperowitch e Pacífico apostam em projetos de impacto

Investimentos destinados a financiar causas ou projetos da área socioambiental e que garantam retorno financeiro não são novidade, porém há pouco tempo ganharam corpo. “Durante décadas o mercado financeiro ideologizou os assuntos sobre meio ambiente e direitos humanos, que eram entendidos como de esquerda, o que é um absurdo, porque essas questões não têm lado”, pondera Fabio Alperowitch, cofundador e gestor da Fama Investimentos, que administra um fundo de 2,6 bilhões de reais concentrado em empresas que sigam princípios éticos e adotem práticas ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG, na sigla em inglês). 

Alperowitch entende que a mudança de posicionamento do mercado, que não dava atenção às questões socioambientais, veio com a reação de variados setores da sociedade ao avanço de pautas contrárias à defesa do meio ambiente, antissociais e antidemocráticas, puxadas pela eleição do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em 2016. “De repente veio essa onda ESG, como um tsunami, e daí o mercado financeiro passa a querer tratar do assunto.” De fato, há um interesse de investidores e as instituições não querem ficar fora, acrescenta ele, que duvida do real propósito de muitas dessas iniciativas, mais focadas no marketing do que comprometidas com a causa. 

Não se trata de ‘filantropia’, ressalta Daniel Izzo, da Vox Capital 

Há diferenças entre as modalidades de investimentos que carregam a bandeira socioambiental. A operação da Gaia com as cooperativas insere-se entre os chamados investimentos de impacto, pois abrangem projetos de cunho específico que levam em conta fatores sociais, humanos e a favor do meio ambiente no investimento, explica Pacífico. Daniel Izzo, sócio-fundador da Vox Capital, gestora criada há 12 anos com o mesmo espírito, destaca que, além do impacto positivo esperado a partir da alocação de dinheiro e do retorno financeiro, tais investimentos precisam ser mensuráveis e ter gestão. “São aspectos que diferem da filantropia”, diz. Também não têm como foco a adoção generalizada de práticas ESG. “Uma atividade de impacto visa o negócio”, assegura. Essas são diretrizes da Global Impact Investing Network (GIIN), uma organização global sem fins lucrativos integrada pela Vox que se dedica a fomentar investimentos de impacto no mundo, apoiando atividades de educação e pesquisa, entre outras. Relatório da GIIN de 2020 revelou que o total de ativos alocados em impacto no mercado global somou 715 bilhões de dólares. Apenas 4% dos investidores estão sediados na América Latina e Caribe. 

Em seu portfólio, a Vox conta com cinco fundos, entre eles três de venture capital, destinados à fase inicial de startups, preferencialmente das áreas de educação, saúde e financeira, e um fundo de crédito privado, em parceria com a Empírica Investimentos, voltado para instituições de microcrédito e financiamento de pequenos empreendedores. Os fundos também são destinados a investidores profissionais ou qualificados. “Nosso objetivo é investir em empresas que desenvolvam soluções de tecnologia, para melhorar o acesso a serviços básicos da população de baixa renda”, explica Izzo. Uma das beneficiadas é a Sanar, de educação para profissionais da saúde, cujo principal produto é um curso preparatório para médicos residentes, de baixo custo e 100% online, um diferencial em relação à maioria dos programas ministrados presencialmente em grandes centros urbanos e que restringem o acesso de profissionais de cidades do interior. 

Outra empresa agraciada é a fintech Celcoin, criadora de um aplicativo para pagar contas, como num correspondente bancário. “Num país em que 70% dos boletos ainda são pagos na boca do caixa e só 2 mil cidades têm agência bancária, o app é uma solução que tem sido utilizada por pequenos lojistas, varejistas, vendedores de porta em porta, especialmente de cidades do interior do Norte e Nordeste, regiões mal servidas pela rede bancária”, ressalta. “Cerca de 30 mil empreendedores estão somando renda para seus negócios e em torno de 80% relatam aumento no fluxo no comércio.”

A Gaia, a Fama e a Vox são certificadas pelo Sistema B Brasil, que reúne 4.073 empresas globalmente e 213 companhias brasileiras, entre elas Natura e Magazine Luiza. Desde 2006, “o Movimento B busca redefinir o conceito de sucesso na economia por meio da certificação de empresas, para que sejam considerados não apenas o êxito financeiro, mas também o bem-estar da humanidade e do planeta”, explica Francine Lemos, diretora-executiva do Sistema B Brasil, em live realizada pelo Valor Econômico. Segundo ela, a demanda por certificações de “empresas B” cresceu quase 50% durante a crise sanitária provocada pela Covid-19. “Não dá para negar que a nossa sociedade vive um momento crucial e não temos ainda noção do impacto da pandemia em termos de desigualdade. Essa é uma das grandes questões do nosso tempo.”

Publicado na edição nº 1178 de CartaCapital, em 7 de outubro de 2021.

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