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Inquisição financeira

Os verdugos da ortodoxia veem o risco fiscal acorrentado a uma dívida pública insustentável

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Inquisição financeira
Heterodoxo. Giordano Bruno de Nola foi queimado vivo em Roma, em 1600, acusado de conspirar contra a ortodoxia - Imagem: Museu do Vaticano
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A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva desatou um tropel de inquietações nas sagradas hostes dos mercados. Escrevo sagradas para equiparar o palavreado e aplomb das gentes do dinheiro e das finanças às protuberâncias religiosas dos sacerdotes da Santa Inquisição.

Acompanhemos Marcos Cesar ­Danhoni Neves em seu livro Do Infinito, do Mínimo e da Inquisição em Giordano Bruno.

“Giordano Bruno de Nola, ou simplesmente o Nolano, foi queimado vivo pela Inquisição no dia 17 de fevereiro de 1600, no Campi dei Fiori, Roma, Itália, após sete anos de cárcere.

“As acusações da Inquisição baseavam-se numa suposta ‘conspiração’ contra a ortodoxia cristã apoiada na metafísica aristotélico-tomista (onde Deus era colocado como primeira causa, motor imóvel e perfeição absoluta); em seu panteísmo e animismo, (Bruno) concebia Deus como imanente ao universo, idêntico a Ele (Deus entendido, não como o criador do Universo, mas como o próprio mundo); e em sua ideia de um universo infinito e ilimitado, com mundos pluralmente habitados, o que desbancava a centralidade e a imobilidade da Terra, e sua exclusividade como sede do homem no universo. As ideias de Bruno são construídas a partir de várias fontes: dos atomistas gregos, Demócrito, Epicuro e Lucrécio, de ­Heráclito (entramos e não entramos no mesmo rio; somos e não somos).”

No Brasil da Transição esquentou a refrega sobre a relação dívida/PIB. Na visão dos inquisidores da ortodoxia econômica, o risco fiscal está associado a uma trajetória “insustentável” da dívida pública. Insustentável, porque essa vileza vai mortificar os mais jovens e os que ainda não vieram à luz com o aumento da carga de impostos ou, na pior das hipóteses, com um calote devastador na riqueza financeira que frequenta os balanços de bancos, fundos, gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão e do dinheirinho. Ecoa a pergunta: quem vai pagar a dívida?

Em sua trajetória secular, o capitalismo seguiu as lições de Bruno ao tratar da infinitude no movimento da pluralidade. No afã de se apropriar da riqueza, as criaturas do mercado estão submetidas à soberania monetária do Estado. O Estado é o Senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos de atender à demanda de crédito das gentes privadas. Esse sistema complexo, em sua evolução, engendrou essa forma de criar dinheiro para dar início ao jogo do mercado. Os bancos apresentam-se como os agentes particulares do Senhor da riqueza universal. Universal, porque é a forma inescapável que deve denominar e mediar todas as negociações, transações e, sobretudo, marcar o valor da riqueza registrada nos balanços.

Os títulos de riqueza são emitidos primariamente pelas instituições financeiras bancárias e não bancárias e negociados pelas mesmas senhoras em mercados ditos secundários, em que se formam os preços e as taxas de remuneração dos papéis. Não só as mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas também a situação patrimonial – devedora ou credora das empresas, bancos e demais instituições – deve estar registrada nos balanços. Os agentes privados do Senhor da moeda estão permanentemente obrigados a manejar os riscos de crédito e de liquidez que afetam seu patrimônio líquido, a relação crucial entre ativos e passivos.

A dívida pública tende a ser fonte de coesão cívica ou de consolidação do poder das elites

Os estudos sobre as relações entre crescimento da dívida privada e da dívida pública ao longo dos ciclos de expansão-contração das economias capitalistas mostram o que deveria ser óbvio, mesmo para um principiante nas coisas da economia monetária: nas expansões, o otimismo faz prevalecer o crescimento do endividamento privado, nas contrações eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam as desconfianças dos mercados, a tigrada corre para os títulos públicos, avaliados como ativos seguros de última instância.

Entramos e não entramos no mesmo rio; somos e não somos. Como construção social, diria Ramaa Vasudevan, a dívida soberana incorpora confiança e incerteza, reciprocidade e coerção, propriedade privada e bem público, poder econômico e autoridade política. Joseph Vogl chama de “zona de indeterminação”, onde Estado e mercado estão entrelaçados em uma relação de poder: a dívida pública tem o potencial de ser uma fonte de coesão cívica – ou consolidar o poder das elites dominantes.

Em seu livro mais recente, In Defense of Public Debt, Barry Eichengreen recorre a Adam Smith para lembrar que ele estava ciente dos aspectos positivos da dívida pública. Smith reconheceu que os governos também tomam emprestado para construir estradas, canais e pontes. Esses investimentos podem aumentar a extensão do mercado, a ponto de gerar receitas suficientes para o Estado pagar seus credores. Além disso, Smith entendeu que os títulos da dívida do governo poderiam ser revendidos no mercado secundário para outros investidores, garantindo que eles permanecessem em mãos privadas. “A segurança que (o governo) concede ao credor original é transferível para qualquer outro credor”, e (apoiado) na confiança universal da justiça do Estado, o credor geralmente vende no mercado por mais do que foi originalmente pago por ele.”

A transferência de títulos da dívida pública, dos quais Smith falou, por sua vez conferiu outras vantagens. Comerciantes e fabricantes poderiam buscar investimentos produtivos quando estes se apresentaram, apesar de terem emprestado anteriormente ao Estado. Os poupadores, buscando um repositório seguro para seus fundos, poderiam adquirir essa segurança sob a forma de títulos da dívida pública. Não apenas a poupança e o investimento adicionais, mas da dívida pública resultariam também o aprofundamento e o desenvolvimento dos mercados financeiros. Essa visão positiva é subestimada, talvez porque é menos sensacional do que os avisos apocalípticos.

O antropólogo Jack Mosse escreveu em seu recentíssimo livro Pound and Fury: “Há implicações que decorrem da visão da economia como um ‘pote de dinheiro’”. Essa visão, diz Mosse, “deforma as estruturas institucionais que moldam o funcionamento da sociedade; demoniza ou elogia indivíduos e grupos que são vistos como pagando ou tirando grana do pote nacional. É também uma visão que limita a imaginação política e econômica, vinculando-nos à ideia de que estamos sempre restritos pela quantidade de dinheiro no pote, e que devemos estar sempre procurando ‘equilibrar o orçamento’. Além disso, não concorda com a realidade de como funciona nossa economia. O primeiro ponto a fazer é que os governos, assim como os bancos privados, criam dinheiro do nada. A ideia de que simplesmente não há dinheiro suficiente no pote não faz sentido”. É um mito. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Inquisição financeira “

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