Economia
Iniciativa pioneira
Países da América Latina discutem medidas conjuntas para combater as iniquidades de seus sistemas tributários
No início de maio, representantes de governos e da sociedade civil se reuniram em Santiago para discutir formas de combater as iniquidades dos sistemas tributários. A capital do Chile sediou dois grandes eventos promovidos pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal): o Seminário Regional sobre Política Fiscal, de 6 a 8 de maio, e a reunião da Plataforma Latino-Americana de Tributação, na quarta-feira 8.
Essa última iniciativa nasceu em julho de 2023 sob liderança do governo colombiano e em pouco tempo alcançou resultados inovadores: é a primeira vez que os países da região discutem conjuntamente questões tributárias. É também a primeira vez que uma instituição intergovernamental regional tem um órgão formal de participação social, o Conselho Consultivo Permanente da Sociedade Civil da Plataforma.
Sempre é válido lembrar o quanto a presença de organizações da sociedade civil em instituições como essa não apenas enriquece as discussões, com contribuições e análises especializadas, mas também desempenha um papel fundamental na promoção de políticas mais justas, transparentes e efetivas. Essa colaboração é essencial para enfrentar as complexas questões sociais que afetam a América Latina e o Caribe.
A Plataforma tem uma estrutura ágil, operacional e participativa: um conselho de ministros, uma presidência pro tempore rotativa, um secretariado técnico exercido pela Cepal, um conselho consultivo da sociedade civil e um conselho consultivo do setor privado. No seu primeiro ano de funcionamento, foram abordados três temas em grupos de trabalho: a progressividade dos impostos, sob a liderança do governo do Chile, a tributação ambiental, debate proposto pela Colômbia, e os gastos tributários, de responsabilidade da República Dominicana.
A sociedade civil participou de todos os debates, levando suas vozes e demandas, muitas vezes negligenciadas nas esferas políticas tradicionais. Esses primeiros meses foram dedicados à troca de experiências e reflexões conjuntas sobre os diagnósticos e potenciais soluções. São muitos os motivos para manter uma instância como essa, a começar pelo combate às desigualdades sociais no continente, reforçadas por uma tributação injusta.
Na América Latina e no Caribe, os sistemas tributários são extremamente regressivos, fazendo com que as populações empobrecidas paguem proporcionalmente mais impostos do que as parcelas da sociedade com maior renda e patrimônio. Os muito ricos praticamente não pagam impostos porque são beneficiados por isenções e taxas reduzidas, além de recorrerem a práticas de evasão e elisão fiscal. Essa é uma das principais razões que movem o Brasil, na presidência do G-20, a defender a taxação dos super-ricos – uma medida fundamental para combater a desigualdade econômica e aumentar a arrecadação pública de forma justa.
Dois encontros promovidos pela Cepal em Santigo focam em propostas para aliviar a carga dos mais pobres e taxar os super-ricos
Outro motivo é a necessidade de assegurar o financiamento de ações para enfrentar a fome, a pobreza e o aquecimento global. Para combater as múltiplas crises que agravam as mazelas sociais e ambientais no continente, são necessários recursos públicos adicionais que deveriam vir essencialmente de quem não paga impostos ou paga muito pouco. Daí a necessidade de maior coordenação entre as nações latino-americanas para combater os subterfúgios que as grandes empresas e os super-ricos constroem para burlar os Fiscos. Juntos, os países podem fortalecer os mecanismos de fiscalização para enfrentar a evasão e fechar as brechas legais que permitem a elisão fiscal. A cooperação internacional também é fundamental para dificultar a transferência de recursos a paraísos fiscais.
Da mesma forma, é preciso promover maior coesão social nos âmbitos nacional e internacional. Sociedades marcadas pela desigualdade extrema passam por processos de fratura social que podem resultar em fascismos. Por isso, o multilateralismo é tão importante para acordar conjuntamente regras que beneficiem igualmente a todos.
Nesse sentido, a criação da Convenção das Nações Unidas sobre Tributação, a chamada “COP da Tributação”, discutida em Nova York sob a liderança da União Africana e organizações da sociedade civil, é de suma importância, pois permitirá que sejam debatidos e consensuados mecanismos tributários internacionais mais justos e inclusivos. A Plataforma Latino-Americana de Tributação, também conhecida pela sigla PT LAC, emerge, nesse contexto, como ator de peso para a defesa dos interesses dos países do Sul Global. Ela favorece a criação de regras tributárias mais justas e inclusivas, colaborando para alinhar as práticas tributárias globais com os princípios de desenvolvimento sustentável.
A Plataforma pode, inclusive, contribuir para combater o racismo e o patriarcado. Concebidos por homens ricos e brancos, os nossos sistemas tributários contribuem para perpetuar esses processos de exclusão de mulheres e pessoas negras, pois não fazem nada para combatê-los. É por isso que são as mulheres negras empobrecidas as que mais pagam impostos, como resultado da combinação de múltiplas opressões, de gênero, raça e classe.
A América Latina e o Caribe, que abrigam milhões de pessoas negras e povos indígenas, têm a obrigação de pautar esse debate tanto na região como nas Nações Unidas. Sem a resolução desses problemas não será possível alcançar a justiça de gênero, justiça racial e justiça social.
A pauta tributária que está na ordem do dia da América Latina, do G-20 e das Nações Unidas. Temos de pressionar nossos governos para que as medidas tomadas nesses fóruns sejam de fato participativas e inclusivas. •
*Economista formada pela Université Libre de Bruxelles, com mestrado e doutorado em Políticas Sociais pela UnB, e integrante do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Iniciativa pioneira’
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