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Infortúnios em série

O governo federal atua para normalizar a produção e os preços dos alimentos em meio aos distúrbios climáticos

Alívio. Até a cenoura, que há tempos pesava no bolso, começou a baixar – Imagem: Renato Luiz Ferreira e iStockphoto
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Extremos de seca ou de chuva tornam incerto o abastecimento de alimentos, sujeito às quebras de safra e de produção. Ao menos por ora, os especialistas não acreditam, porém, em novos picos de escassez e de preços. Apesar do contexto de exacerbação climática duradoura, o futuro próximo parece desanuviado, graças à retomada da política de estoques reguladores, dilapidada nos governos Temer e Bolsonaro. O risco de intempéries não foi afastado, apenas mudou de tipo. Se houver pressão inflacionária, talvez ela venha do setor de serviços, avaliam especialistas.

Os estoques reguladores, que o governo Lula busca recompor, têm papel crucial para o controle da inflação diante do aumento aquisitivo e do emprego desde o ano passado. O problema é que a verba está curta. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a dotação de 2,7 bilhões para o Programa de Aquisição de Alimentos em 2023, prevista no projeto encaminhado ao Congresso em 2022, foi reduzida, após negociações no período de transição, a 516,1 milhões e, no ano passado, após suplementação orçamentária e créditos extraordinários, expandida para pouco mais de 1 bilhão de reais, integralmente executados.

A renda e o emprego aumentaram em 2023 e isso “levou mais gente para o mercado”, diz Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero. Essas pessoas voltaram a ter poder de compra, mas se deparam com preços de alimentos elevados. “O aspecto positivo é que os preços estão, de fato, recuando em relação ao pico ocorrido no fim do ano passado e no começo deste ano.”

Risco. O País tornou-se dependente da importação de leite da Argentina e do Uruguai – Imagem: iStockphoto

O consumidor estranha, pois os preços ainda estão em um patamar alto, apesar de terem começado a baixar. O IPCA acumulado em fevereiro foi de 1,25% e, no segmento alimentos e bebidas, atingiu 2,34%, muito acima da média do indicador. Entre fevereiro de 2023 e o mesmo mês de 2024, contudo, o índice de inflação geral foi de 4,5%, enquanto o de alimentos e bebidas, de 2,62%, bem abaixo da média do indicador.

Belik anotou algumas variações significativas de preços de hortifruti. A caixa com 18 pés de alface americana no atacado chegou, em fevereiro de 2024, a 41 reais, e no mesmo mês de 2022, estava a 17 reais, “um pico enorme”. Na segunda-feira 18, estava a 28 reais. Após o repique em dezembro, janeiro e fevereiro, o preço finalmente voltou a cair.

“A cenoura, que dizem ter sido o grande vilão da inflação, em fevereiro estava a 122 reais a caixa do tipo AAA, e, em 2023, oscilou em torno de 50 reais. Na segunda-feira 18, estava a 117 reais.” O problema, frisa o economista, é que o uso de estoques reguladores só funciona para baixar os preços do arroz, do feijão e dos grãos, e não para hortaliças, legumes e frutas. Os preços dos dois primeiros itens até caíram em relação a 2023. A saca do feijão carioca ­custava 401 reais um ano atrás. Na segunda-feira 18, a cotação atingiu 219 reais. Agora, o que puxa os preços são os hortifruti.

O diretor do Fome Zero aponta a necessidade de o governo estimular a desconcentração da produção de arroz, focada no Rio Grande do Sul, e de feijão, no Paraná e em Minas Gerais. “Existe produção em outros estados, mas os sistemas de distribuição são muito concentrados e é preciso incentivar sistemas locais ou regionais, inclusive para poder melhorar o preço desses produtos”, esclarece. O mesmo vale para os hortifruti. As hortaliças não podem percorrer longas distâncias, portanto, é necessário incentivar a produção local. “Na gestão do problema, o governo deveria incentivar outros sistemas alternativos de distribuição, como as feiras livres.”

A desconcentração do varejo parece um ponto importante a ser considerado no plano nacional de abastecimento, que o governo está elaborando. Contemplar outras opções de venda e criar sistemas regionais de produção, distribuição e consumo “aumenta a concorrência e pode mudar a situação a médio prazo. Tem de fazer essas coisas”, reforça Belik.

Renda e emprego aumentaram e isso levou mais gente ao mercado

A celebrada capacidade da Embrapa de adaptação de variedades deve ainda ser utilizada para diminuir a vulnerabilidade dos alimentos ao clima. Hoje, quando há uma situação de crise no Sul, o abastecimento do País entra em colapso. Outro fator de risco é a abertura excessiva da economia em um contexto geopolítico complicado. “Em editorial, a Folha de S.Paulo disse que o Brasil tem de abrir a economia, é muito fechado em relação à indústria, e que o único setor aberto é a agricultura. Na verdade, o Brasil precisa tomar muito cuidado com isso, porque o comércio mundial não está mais aberto e livre como antes. Existem blocos, uma série de restrições e embargos. O País deve concentrar-se na segurança alimentar”, alerta Belik.

Algumas cadeias produtivas se abriram demais. “Dependíamos muito de importações de leite da Argentina e do Uruguai. Houve interrupção na logística internacional e os preços aumentaram, mas por que o Brasil, que tem grande potencial, não produz mais leite?”, indaga o economista. É arriscado depender tanto de importações. Outra cadeia produtiva aberta demais é a do arroz, que não tem abastecimento equilibrado e, hoje, também é muito dependente do Uruguai. No caso do feijão, acrescenta Belik, é raro encontrar a semente em outros países e, quando tem, “não é o feijão que o brasileiro está acostumado a consumir”.

No caso do trigo, a situação melhorou. O Brasil reduziu a dependência externa de 50% para 40%. Antes se consumia muito arroz de sequeiro, de Goiás, e a produção do Maranhão. De repente, o arroz goiano desapareceu. Hoje, o alimento é produzido basicamente no Rio Grande do Sul. “Se não há incentivo à produção e ao consumo local, acaba levando a esse tipo de dependência”, frisa Belik.

Segundo Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, a inflação dos alimentos entre dezembro e fevereiro tem a ver, principalmente, com a entressafra de vários produtos e fatores climáticos que prejudicaram o plantio. “A colheita de arroz começou no fim de janeiro e intensificou-se no mês passado. Com 7% da área plantada já colhida, o preço diminuiu em mais de 20%. Esse efeito deve prosseguir, porque a colheita avançará nas próximas semanas”, destaca Mello. O preço baixou para o produtor e a expectativa é de que a redução chegue em breve ao consumidor. O mesmo vale para certos tipos de frutas e hortaliças com ciclos curtos de colheita. É o caso também do feijão, com três safras.

Sem volta. Os aluguéis são parte dos chamados serviços subjacentes que, quando sobem, fica dificil retrocederem – Imagem: Renato Luiz Ferreira

“Quanto ao IPCA de fevereiro, apesar de o número ter sido 0,05 ponto porcentual acima da projeção mediana dos analistas, eu diria que a composição foi muito positiva. Os preços que subiram em geral são os monitorados, principalmente combustíveis e educação, que sempre sobem em fevereiro, e não aqueles chamados de serviços subjacentes, que teriam, ou indicariam, algum problema mais estrutural na inflação, de aumento excessivo de salários e custos. Isso não aconteceu”, sublinha o secretário de Política Econômica. Todos os modelos apontam uma inflação, neste ano, de 3,5%, menor do que a verificada no ano passado, de 4,6%. “As notícias são muito boas. A atividade econômica está vindo forte, acima das expectativas, e a inflação tem perspectiva de se aproximar do centro da meta, desacelerar em relação ao ano passado e, inclusive, com uma queda nos preços de alimentos nos próximos meses”, ressalta Mello.

Segundo o economista Saulo ­Abouchedid, professor da Facamp, os preços dos alimentos subiram “devido a uma questão sazonal e à emergência climática”, e não devem ter força para pressionar a inflação neste ano. “Quando observamos a evolução dos últimos anos, pouquíssimas vezes se chegou a uma inflação de 3%, como se propõe agora. É muito difícil atingir esse patamar. É preciso rediscutir a meta inflacionária”, avalia Abouchedid. “O grande perigo, que o Banco Central pode utilizar como justificativa para diminuir o ritmo da queda da Selic, é a inflação de serviços, impulsionada pela recuperação do mercado de trabalho nos últimos meses de 2023. Se a inflação de serviços acelerar este ano, poderemos ter uma mudança na política monetária justificada por isso.” •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Infortúnios em série’

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