Economia
Impasse aparente
Há condições para baixar os juros, mas motivos relevantes recomendam só fazer isso no próximo ano


A combinação de juro alto e real valorizado debelou a especulação no câmbio imperante até dezembro e refreou a inflação. Em um evento em São Paulo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, antecipou que a taxa Selic deve começar a cair “de forma consistente e sustentável em breve”. De fato, há condições para reduzir os juros, mas a turbulência externa e o ano eleitoral tornam esse cenário mais provável apenas em 2026, avaliam economistas. Um levantamento do Banco Central aponta que 65% dos custos da produção de alimentos estão ligados, direta ou indiretamente, à variação do dólar.
Para José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, “é preciso levar o BC a sério no seguinte sentido: existe uma regra para tentar manter o mercado funcionando ao menor custo possível. Essa regra são as metas de inflação, e a tentativa de coordenar expectativas em torno delas. Acho que é preciso olhar para o BC com esses olhos”, sublinha.
A atual direção do Banco Central, prossegue, conquistou o respeito que chegou a ser questionado por alguns meses no ano passado. A perspectiva do câmbio, em relação ao resto do mundo, vai bastante bem. Ou seja, a continuidade do dólar fraco é uma possibilidade consistente, mas sabe-se que não é só lá fora, tem a ver também com o que acontece no Brasil.
Há três vertentes internas decisivas: o diferencial de juros, a expectativa da trajetória fiscal e o conjunto de pressões ligadas à questão política no horizonte da eleição. “A atividade, realmente, está fraca. Acho muito difícil no segundo semestre uma alta relevante em relação ao primeiro. Isso não é recessão, o que é muito bom. Mas é sinal, claramente, de que, em parte, a terapia do BC está funcionando”, avalia Gonçalves.
Segundo o BC, 65% dos custos da produção de alimentos estão relacionados à variação do dólar
As projeções de inflação para este ano e o próximo estão cedendo e os juros, em alguma medida, também. É muito difícil para o BC dar um sinal de redução da Selic sem ocorrer uma melhora da ancoragem, isto é, das perspectivas de inflação futura. Todos admitem que, até 2026, há espaço para cumprir a meta de resultado primário, mesmo que à custa de algum contingenciamento. A partir de 2027, o próprio projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias já mostrou que haverá problemas graves para se atingir a meta, porque faltarão recursos para gastos obrigatórios. “Existe uma enorme incerteza em relação a isso”, ressalta o economista-chefe do Fator.
Mantido o cenário atual, a perspectiva, juntando câmbio e atividade, é claramente favorável à desinflação, o que deve impactar nas projeções. Não há mais quem tenha coragem de dizer que o dólar vai para 6,25 reais. Isso só acontece se ocorrer algo muito ruim. Portanto, a incerteza no lado fiscal e na parte política é, em última instância, o que pesa. “Eu acho que eles serão cautelosos. Se houver algum sinal da convergência da preocupação com a regra fiscal, nos termos em que o BC enxerga, aquela condição de as políticas serem minimamente consistentes, eles vão virar o ano reduzindo juros, ou anunciando redução. Mas, se não houver e a coisa azedar, ou seja, se se caminhar para uma situação em que fique claro que Lula será reeleito, e que o governo não tenha como dar algum sinal diferente, em relação à perspectiva fiscal, aí eu acho bem difícil começar a baixar os juros.”
O economista do Fator considera positiva a afirmação de soberania pelo governo. “Um país que defende as suas instituições soberanas tem menor risco institucional do que outros. Você imagina se o governo recua e aceita as pressões externas, qual é a visão que um estrategista internacional vai ter?”
Fôlego. O bônus da conta de energia contribuiu para a queda da inflação em agosto – Imagem: iStockphoto
“Espaço para derrubar a Selic tem, com a inflação desacelerando e, ao mesmo tempo, a perspectiva de melhora do carry trade devido ao aumento do diferencial de juros entre EUA e Brasil”, ressalta o economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp. Há um fôlego para o real valorizar-se nesse cenário, portanto seria possível iniciar agora a trajetória de queda dos juros. Ainda mais diante dos indicadores do mercado interno, com a indústria desacelerando e o mercado de trabalho começando a tropeçar.
Há, porém, o aspecto institucional, que domina, pondera Abouchedid. Enquanto a meta é de 3%, e as expectativas de inflação são de 4,7%, acima do teto. Nessas condições, qualquer tentativa do Banco Central de diminuir a Selic, ainda neste ano, pode gerar reação do mercado e criar dificuldades, inclusive dentro dos parâmetros do regime de metas, porque, se o BC não conseguir chegar à inflação de 4,5%, terá de se justificar no Congresso.
O Banco Central poderia apostar que a inflação chegará a 4,5% e antecipar os cortes, mas isso seria muito arriscado, porque ele teria de, ao mesmo tempo, lidar com o mercado e partir para uma política monetária já pensando nas eleições. Os preços das commodities começam a subir, e isso pode pressionar a inflação de alimentos. É preciso considerar também a evolução dos preços de serviços. Não há garantia de que vai continuar se desacelerando. A deflação em agosto não é um indicativo de que o IPCA vai se comportar dessa forma até dezembro. Por isso, o mercado espera que os cortes de juros comecem no ano que vem, sintetiza Abouchedid.
Existe aí um dilema, porque, se o Banco Central começar a cortar a Selic no próximo ano, provavelmente a partir de março, será muito próximo da eleição. A indústria e o comércio estão mal, os serviços ainda estão se sustentando, já há indicadores de atividade ruins. Pode não dar tempo para a economia se recuperar, ou retomar uma trajetória de crescimento, antes das eleições. Pode ser tarde do ponto de vista do recurso à política monetária.
Especialmente devido ao contexto geopolítico internacional, há pouco espaço para reduzir a Selic neste momento, pondera o economista Rafael Ribeiro, professor de economia da UFMG e pesquisador do Made/FEA–USP. Outro ponto a considerar, prossegue, é se interessa ao governo que a Selic reduza. “Acho que, se o governo controlar bem a narrativa, ele consegue justificar que o principal fator de descontrole das contas públicas é ocasionado pela alta taxa de juros. Porque teve a PEC Emergencial no início do governo, mas desde então o déficit primário vem caindo. Portanto, o que tem puxado o endividamento para cima seria, de fato, o serviço da dívida, que cresce muito com a taxa de juros elevada”, observa Ribeiro.
O diferencial de juros, a trajetória fiscal e a questão política são as vertentes decisivas
O Fed já começou a reduzir a taxa de juros, e o hiato entre a taxa norte-americana e a brasileira vai aumentando, mesmo sem o Banco Central começar a reduzir a Selic. Com isso, a tendência é atrair, em condições normais, mais dólares para o Brasil, apreciando mais ainda o real ante a moeda estadunidense, o que, por sua vez, tende a segurar mais os preços. “Do ponto de vista do governo, ele pode extrair benefícios eleitorais a partir de uma inflação de alimentos ou inflação geral mais baixa derivada da valorização cambial”, sublinha o professor da UFMG.
A Selic alta encarece o custo do crédito, mas tem efeito muito difuso sobre a atividade econômica e é difícil que uma eventual queda de atividade em uma reversão de ciclo se deva exclusivamente à taxa de juros. Esse efeito não é igual em todos os setores, nem perceptível para a população de forma homogênea. “O custo político para o governo de uma atividade desaquecida é muito baixo e difuso. Pode dever-se a diversos outros fatores. Do ponto de vista político, eu entendo que uma Selic mais alta, neste momento, principalmente pensando no efeito de curto prazo, pode ser mais benéfica para o governo, porque isso deve segurar a inflação, pensando na corrida eleitoral do ano que vem”, conclui Ribeiro.
O movimento de queda da inflação não deve ser superestimado. Em agosto e na prévia de setembro, destaca o economista, boa parte desse declínio deveu-se ao bônus da conta de energia, que por sua vez mais do que compensou a elevação da tarifa, passando para bandeira vermelha.
Com o bônus na conta de energia, isso reduziu o custo e segurou bastante a inflação. É um fator pontual, porque esse bônus deixará de existir a partir de agora. Há fatores localizados puxando a inflação para baixo, o mercado de trabalho aquecido e a situação geopolítica atuando em favor do argumento da manutenção da Selic no patamar em que ela está. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Impasse aparente ‘
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