Economia

A Total, a Petrobras e a abertura de mercados

O que o Brasil deveria, mas não aprendeu com o processo de liberalização e internacionalização das empresas francesas de petróleo

A Total resulta de um projeto planejado e inserido em uma estratégia geopolítica
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Nos últimos meses, propagandas da empresa francesa Total têm estampado as paredes dos mais diversos aeroportos brasileiros, bem como tem sido comum encontrar diversas notícias relacionadas à entrada da empresa no Brasil.

Esses movimentos não refletem somente uma “ação pontual” da Total, mas uma estratégia de longo prazo de forte diversificação e internacionalização das empresas de petróleo da França, combinada com uma mudança de atuação do Estado francês.

Desde meados dos anos 1980, a França passou por uma progressiva liberalização das políticas do setor de petróleo. Essa liberalização ocorreu em três grandes etapas:

1) Foram eliminados os controles de preços dos derivados de petróleo que vigoravam no país até 1986;

2) Foram destituídas as políticas de quotas de importação e exportação, que protegiam as empresas nacionais no atendimento do mercado interno, substituídas pela liberalização do comércio de derivados no país;

3) Foram fundidas as empresas estatais Elf e CFP/Total numa única empresa, a Total, com forte diluição da participação estatal na empresa (o Estado ficou com menos de 5% do capital da empresa), no começo dos anos 2000.

Parte dos analistas poderia entender essa liberalização como fruto de uma política para permitir o aumento da concorrência e a melhora da produtividade do mercado de petróleo francês. Como mostrou, porém, o analista Llewelyn Hughes, em sua obra “Globalizing Oil”[1], esse processo foi muito mais complexo, relacionado principalmente a dois fatores: às mudanças estruturais do mercado de petróleo na França e à centralidade do processo de internacionalização na nova “geoestratégia” do setor de petróleo francês.

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Por um lado, após o forte aumento do preço do petróleo nos anos 1970 e a contínua redução do parque produtivo nos países desenvolvidos nos 1980, observou-se uma “longa recessão” no consumo de derivados de petróleo nessa região, inclusive na França.

Entre 1973 e 1985, a redução da aquisição de derivados em solo francês foi em torno de 770 mil barris/dia, que representou um decréscimo de cerca de 30%. De 1985 até 2014, a demanda interna continuou com a mesma trajetória e caiu mais 20%, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE).

Não por acaso, desde 2009 foram fechadas quatro das doze refinarias existentes no país europeu. Por outro lado, a independência de várias ex-colônias francesas detentoras de grandes reservas petrolíferas (Argélia, por exemplo) entre os anos 1960-70 e a dificuldade por novas descobertas de petróleo no território provocaram uma restrição na capacidade de produção de óleo cru das empresas estatais.

Esse desequilíbrio, com menor níveis de reserva de petróleo cru e elevada capacidade de refino, coincidiu com um período de grandes oscilações no preço do petróleo internacional, o que alavancou maiores perdas com o parque de refino nacional.

Com efeito, esse cenário começou a exigir o desenho de novas estratégias das corporações estatais francesas (Elf e CFP/Total) para recuperar as perdas ocorridas nacionalmente. Somado às oportunidades abertas globalmente no setor de petróleo a partir dos anos 1980, impulsionou tais empresas a apostar na internacionalização como forma de diversificar seus ganhos e alcançar escala global de produção em detrimento da atuação no mercado nacional.

O mesmo Hughes lembrou que a estratégia de internacionalização e expansão para novos mercados foram vistas como alternativas de “diversificação e dos ganhos de escala (e, por isso,) a Elf e a CFP/Total se predispuseram em apoiar a liberalização e a abertura para o setor privado no mercado de petróleo francês (…). Isso reduziu os interesses por disputar e preservar suas ‘reservas de mercados’ dentro da própria França”.

Além das potencialidades de novos mercados consumidores, como Ásia e Estados Unidos, foram abertos espaços para investimentos em petróleo cru e no refino em outras regiões do mundo.

O resultado dessa política foi, por exemplo, a queda da participação do mercado francês no somatório de derivados vendidos pela Total em termos globais de 41% em 1983 para 19% em 2004. Esse último dado comprova que a estratégia de internacionalização se mantém até os dias de hoje. Com a transformação da CFP/Total e a Elf numa única empresa, a Total, fez desta última a principal protagonista dessa “corrida para exterior”.

Recentemente, a Total realizou diversas operações a fim de ampliar sua atuação em mercados estrangeiros. No Oriente Médio e na América do Norte, a empresa adquiriu blocos de exploração e fez parcerias com empresas locais.

Os maiores destaques foram, no entanto, o ingresso na Europa, em primeiro lugar, e na América do Sul e África, segundo lugar. Na Europa, a Total anunciou recentemente a compra da empresa petroleira Maersk Oil, uma transação que custará 7,45 bilhões de dólares e ações e em dívida da empresa dinamarquesa. A integração das atividades com esta nova empresa fez da petrolífera francesa a segunda operadora no Mar do Norte, tendo notoriedade no Reino Unido, Noruega e Dinamarca.

Na África e América do Sul, a Total tem realizado um movimento conjunto a fim de capitanear uma “integração externa” com os seus fornecedores franceses e se aproveitar do desenvolvimento tecnologico da Petrobras para explorar o petróleo também da costa da África negra.

Não por outra razão a Total assinou dois acordos com o Senegal, ambos para produção offshore em águas profundas e ultra-profundas. O acordo foi fechado com a estatal senegalesa Petrosen para exploração do bloco de Rufisque, na qual a francesa deterá 90% da participação.

O outro acordo no mesmo país foi assinado para avaliar o potencial de exploração do offshore ultra-profundo senegalês, no qual a empresa pode se tornar um operador do bloco. E, no Brasil, a empresa comprou participações no pré-sal dos campos de Libra (20%) e, mais recentemente, de Iara (22,5%), além de realizar uma “parceria estratégica” com a Petrobras que visa permitir sua atuação em outros segmentos, como o refino.

Além da Total, a francesa Entrepose ingressou no mercado brasileiro, comprando a empresa de engenharia Intech, como parte dessa estratégia de “integração externa”.

Portanto, os fatos apontados acima comprovaram que a internacionalização foi resultado de uma percepção dos atores de uma mudança setorial estrutural de longo prazo. As necessidades de ampliar as reservas de petróleo cru, o desaquecimento da demanda por derivados e a reestruturação global do setor petróleo, a partir da década de 1970,  “forçaram” um novo arranjo institucional (entre governo, estatais e setor privado) que resultou, ao mesmo tempo, em liberalização do setor petróleo e internacionalização das empresas francesas.

Embora o setor privado e as próprias empresas estatais tivessem um papel central nesse novo arranjo, isso não significou que o governo francês se omitiu do processo, muito ao contrário.

Ainda que a liberalização fosse a opção escolhida, o governo buscou preservar os interesses da soberania e segurança energética da França. Em primeiro lugar, atuou como grande mediador entre os interesses empresariais nacionais e estrangeiros para que todas essas reformas ocorressem de forma gradual, a fim de não gerar uma ruptura no modelo anterior.

E, em segundo lugar e mais importante, alterou sua forma de atuação para garantir a segurança energética francesa. Nesse sentido, três ações pouco destacadas pela literatura devem ser sublinhadas:

O governo aceitou reduzir fortemente sua participação na Total desde que mantivesse o poder de veto caso qualquer venda de capital afetasse os interesses nacionais;

Permitiu a liberalização dos preços e do comércio de derivados de petróleo, mas, em contrapartida, estabeleceu uma forte regulação para garantia de estoques a fim de atender toda a demanda doméstica gerida pelo Comité profissionnel des stocks stratégiques pétroliers (CPSSP)

E manteve a posição de orientador/definidor da utilização do petróleo e de seus derivados no fornecimento enérgetico de longo prazo.

Sobre este último aspecto, vale ressaltar que governo francês continua a controlar a participação do petróleo com fonte de energia para o país (30% até 2030) e estimula a internacionalização porque coaduna com seus interesses de integração produtiva e acesso a reservas globais de petróleo.

Em suma, a liberalização observada na França nos últimos tempos dialogou com uma situação de “longa estagnação” do seu mercado interno e uma reavaliação “geoestratégica” da necessidade de internacionalização de suas empresas.

Essas reformas liberalizantes não foram, porém, implementadas a toque de caixa, mas coordenadas pelo Estado que definiu limites rígidos caso afetasse a sua segurança energética. Ao fim e ao cabo, todo esse processo somente foi construído porque houve a chancela de uma forte estrutura de poder estatal na França.

Mesmo depois desse período, o Estado manteve sua posição central no desenvolvimento do setor de energia: como o principal proprietário das estatais de energia nuclear e elétrica e redirecionando sua forma de atuação no segmento de petróleo para um gestor de estoque de médio e curto prazo e planejador de longo prazo.

Não se pretende fazer aqui uma avaliação da liberalização em si, mas apontar que quando isso ocorre, deve-se estar fortemente atrelada aos objetivos estratégicos nacionais bem como geopolíticos e não a uma miríade de interesses privados. Exatamente o oposto que acontece no caso brasileiro.

As atuais reformas de desregulamentação do governo Temer e o enfraquecimento da atuação da Petrobras ignoram a nova conjuntura do setor pós descoberta do pré-sal.

A expansão sem precedentes do volume de reservas de petróleo, a possibilidade de ampliação do consumo no longo prazo e a própria capacidade de ampliação da capacidade produtiva interna colocam o Brasil numa posição extremamente diferenciada do caso francês.

O desenvolvimento nacional e interno do setor petróleo abre espaço para uma maior influência no campo geopolítico, uma expansão das forças produtivas locais e uma possibilidade de preservar a segurança energética no longo prazo sem depender de qualquer outra região.

Nesse sentido, o fortalecimento da atuação da Petrobras e a existência de uma institucionalidade estatal que coordene as atividades do setor são fulcrais para combinar o aumento das reservas de petróleo e do refino nacional com políticas adequadas para resguardar a segurança energética e a reindustrialização nacional. Essa breve comparação entre Brasil e França sugere que qualquer estratégia de abertura deve ser dirigida pelo Estado e é muito mais uma exceção relacionada aos seus interesses nacionais, em vez de ser uma regra geral. 

* Rodrigo Pimentel Ferreira Leão é economista (FACAMP) e mestre em desenvolvimento econômico (IE/UNICAMP). Trabalhou no Ipea, Dieese e na Petros. Atualmente é pesquisador da Cátedra Celso Furtado/FESP-SP e um dos integrantes do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da FUP

Caroline Scotti Vilain é Internacionalista (UFSC) e mestranda em relações internacionais (UnB). Atualmente integra o Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da FUP



[1] Hughes, L. Globalizing Oil: Firms and Oil Market Governance in France, Japan and the United States. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

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