Economia

Homens e mulheres do campo no Brasil pós-golpe

Há três anos, acreditei que o ideário escravocrata-ruralista ficaria para trás. Confesso que errei

Apoie Siga-nos no

Em 2014, escrevi o capítulo “Homens e mulheres no campo: construção da dignidade em harmonia com a natureza”, para um livro. Percebia evolução e que o ideário escravocrata-ruralista ficaria para trás.

Três anos depois, confesso ter errado.

A casa-grande volta a fazer uso da senzala e retira-lhe a sobrevivência mínima. O que se pretende com as “reformas” trabalhista e previdenciária dispensa análise que indique quem sairá perdendo.

O texto, editado à paciência (menor) da leitura digital, corria assim:

“Demorou muito para que o conceito de sustentabilidade superasse a régua do ambiental, da ecologia. Ele que antes de tudo envolve e faz eternizar a espécie humana em suas interrelações e expressões.

Alimentos, fibras e energia fazem do Brasil um dos mais importantes produtores agropecuários do planeta (…), mas como tem sido e está a vida dos homens e mulheres responsáveis por isso? E como eles se apropriam do meio ambiente para produzir?

Embora habite na sociedade contemporânea uma ideologização que restringe o “homem do campo” ao trabalhador rural – homens e mulheres que acordam antes do dia clarear e saem para as lavouras carregando as ferramentas da produção – são também “do campo”, mesmo morando em centros urbanos, agrônomos, biólogos, técnicos agrícolas, zootécnicos, pesquisadores, vendedores de insumos, empresários do agronegócio, muita gente, enfim.

Como foram do campo Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, entre outros, que através de obras seminais criaram o arcabouço antropológico e sociológico capaz de nos fazer entender quem são, somos, esses brasileiros que se aproveitam do clima subtropical e da abundância de água para transformar grandes extensões de terras pouco férteis numa potência agropecuária.

Ao contrário do que propunham esses autores, com o passar do tempo, a discussão sobre a evolução das atividades rurais foi se deslocando para aspectos políticos, econômicos e técnicos em detrimento do estudo da cultura e da sociabilidade de seus atores. É o que se percebe em grande parte da sociedade quando, diante das graves dificuldades de sobrevivência do pequeno agricultor, prefere ver na agropecuária uma forma apenas mecanicista de produção, onde o trabalho humano é acessório ou, pior, ausente.

Em “Os Parceiros do Rio Bonito” (Editora 34, SP, 2003), Antônio Cândido (salve eterno, professor), diz: “Os animais e as plantas não constituem, em si, alimentos do ponto de vista da cultura e da sociedade. É o homem quem os cria como tais, na medida em que os reconhece, seleciona e define”.

No Brasil, as origens desses trabalhadores foram expostas por Darcy Ribeiro, em “O Povo Brasileiro” (Companhia das Letras, SP, 1995). Ainda no século XVI, com o comércio da madeira e os engenhos de açúcar, a Colônia tentava conquistar autonomia engajando o escravo índio ao setor agroexportador. Segundo o autor, dessa célula brotaram as cinco variantes de nossa identidade étnica.

Crioula, a partir dos engenhos de açúcar do Nordeste; cabocla, engajada ao extrativismo amazônico; sertaneja, que espalhou gado do Nordeste ao Cerrado Central; a caipira, que partiu do comércio de índios, chegou à mineração de ouro e diamantes, e se consolidou nas grandes fazendas de café; e a gaúcha, do pastoreio extensivo. A elas, no final do século XIX e primeira metade do século XX, juntaram-se os imigrantes europeus e asiáticos.

Resultado de um processo agrário-mercantil voltado à exportação, que após cinco séculos ainda persiste, o Brasil produtor de alimentos é uma nação de índios, escravos, mamelucos, caboclos, sertanejos e caipiras – oriundi ou não – cada vez mais deslocados de seus locais de origem e trabalho e de suas habilidades e culturas.

Entre 1970 e 2006, a população brasileira praticamente dobrou. Já o pessoal ocupado na atividade agropecuária, diz o último (sim, não será mais o mesmo) Censo Agropecuário caiu de 17,6 milhões (19,0% da população total), em 1970, para 16,5 milhões (8,8% da população), em 2006.

Esse êxodo das áreas rurais para as urbanas se intensificou, sobretudo a partir de 1985. Contaram para isso um longo período sem crescimento, a falta de apoio à atividade agrícola em geral e uma visão política e econômica neoliberal equivocada que, ao enfraquecer o Estado indutor histórico do pequeno agricultor e das culturas que compõem a base da alimentação do brasileiro, acabou por marginalizá-los.

Isso gerou contundente descompasso entre os resultados econômicos da produção agropecuária e a sobrevivência digna de grandes parcelas de trabalhadores que ainda vivem no meio rural. Se o último Censo Agropecuário já havia exposto o suficiente, o IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mostra ainda mais.

Enquanto na zona urbana a taxa de analfabetismo dos maiores de 15 anos é de 7,5%, no campo ela atinge 23,5% e 3/4 da população não completaram ensino fundamental (…). Ainda assim, existiam no País 4,36 milhões de produtores familiares que geravam 38% do Valor Bruto da Produção nacional, com índices majoritários em produtos que atendem o cardápio de nossa mesa.

Vários mecanismos de ajuda e incentivo foram criados nos últimos anos com a intenção de amenizar essa situação e, numa segunda etapa, revertê-la dando ao pequeno produtor a possibilidade de ter moradia, campo de trabalho, apoio para obter produtividade e mercado para vender sua colheita. São, no entanto, constantemente, relativizados ou até condenados pelos representantes do agronegócio.

De uns tempos para cá, generalizou-se a ideia de que reforma agrária é coisa do passado. Modelo antigo, ineficaz. Apenas distribuir terra de nada adianta. É verdade, mas também mentira, pois ninguém mais prega esse caminho, comprado facilmente por quem deseja apenas apaziguar mentes.

A transformação de que o campo necessita e que irá libertar parcelas de trabalhadores ou pequenos proprietários que ainda não alcançaram um nível de vida digno é essencialmente capitalista. Implica aproveitar nossa formação étnica, a vocação agrícola transferida através de gerações, e o desenvolvimento tecnológico já alcançado para fazê-los participar de forma produtiva em nosso estágio de potência”.

Isto escrevi há três anos. Isto o governo usurpador está destruindo.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo