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Hegemonia em xeque?

Desafios e perspectivas do dólar sob Donald Trump

Hegemonia em xeque?
Hegemonia em xeque?
Cerca de 60% dos ativos globais são em dólares – Imagem: iStockphoto
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No único debate presidencial de 2024 entre Kamala Harris e Donald Trump, na simbólica data de 11 de setembro, o ex-presidente deixou claro seu objetivo de preservar a hegemonia do dólar. Trump declarou que puniria os países que abandonassem a moeda estadunidense, amea­çando impor tarifas de 100% sobre as nações desertoras. Após sua eleição em 30 de novembro, voltou ao tema em suas redes sociais, exigindo que os países dos BRICS se comprometessem a não criar uma moeda alternativa, nem apoiar qualquer outra iniciativa que pudesse desafiar o papel central da moeda norte-americana na economia global.

A discussão sobre a criação de novos instrumentos para reduzir a dependência do dólar nas transações internacionais não é nova. Ao longo das décadas, a “morte” da moeda dos EUA foi anunciada inúmeras vezes, com potenciais substitutos, como o iene, o marco e o euro, surgindo apenas para, eventualmente, perderem força. Agora, o renminbi desponta como uma alternativa, impulsionado pela ascensão da China ao status de potência global. Após oito décadas de domínio incontestável, estaria a hegemonia do dólar finalmente sob ameaça?

O processo histórico que se desenrolou desde o fim da Segunda Guerra Mundial permitiu aos EUA estabelecer o dólar como a divisa-chave do sistema monetário e financeiro internacional, garantindo vantagens econômicas e estratégicas que foram resumidas na ideia de um “privilégio exorbitante” pelo então ministro da economia francês. O privilégio refere-se à capacidade dos EUA de pagar suas dívidas internacionais utilizando a moeda que eles mesmos emitem. Essa capacidade está diretamente relacionada com uma consequência fundamental da posição do dólar enquanto divisa-chave, o fato de os ativos estadunidenses, particularmente aqueles da dívida pública federal, representarem os instrumentos mais líquidos e seguros disponíveis em âmbito global, servindo não apenas de base para a precificação dos demais ativos, mas sendo também avidamente entesourados pelos Bancos Centrais ao redor do mundo. Ou seja, o dólar não é um meio imparcial de trocas internacionais, na medida em que representa a concessão de crédito para seu Estado emissor. Ao que tudo indica, ninguém sabe disso melhor que Donald Trump.

Em 1971, o então Secretário do Tesouro dos EUA, John Connally, selou o fim do padrão dólar-ouro com a emblemática declaração “o dólar é nosso, o problema é de vocês”. Naquele período, perto de 75% da renda global e da produção de bens e serviços estavam concentrados nos EUA e seus aliados. Hoje, o cenário é, porém, bastante diferente: apenas a China responde por 18% da renda global e 25% da produção de bens manufaturados. Considerando a paridade de poder de compra, os BRICS já possuem um peso econômico comparável ao do G–7. Projeções recentes do Goldman Sachs, o banco responsável por cunhar o acrônimo “BRICS” em 2001, indicam que, até 2075, os países desenvolvidos deterão apenas um terço da renda global, ligeiramente menos que os BRICS, enquanto o terço restante será dividido entre outras economias emergentes e em desenvolvimento. Nesse cenário, os EUA seriam a terceira maior economia mundial, atrás de China e Índia. É difícil supor que o dólar conseguirá manter-se hegemônico nessa nova ordem global. Sua posição tenderia a seguir relevante, mas não necessariamente dominante.

Trump ameaça impor tarifas como uma tentativa de combater fantasmas de um futuro possível, mas que ainda não encontra correspondência na realidade monetária e financeira atual. A hegemonia do dólar permanece sólida: enquanto os EUA representam cerca de 20% do PIB global e 10% das exportações de bens e serviços globais, ativos denominados em dólares correspondem a, aproximadamente, 60% das reservas oficiais, dos créditos bancários e dos instrumentos de dívida emitidos globalmente. Além disso, metade das transações internacionais continua a ser liquidada em dólares, conforme os dados mais recentes do Banco de Compensações Internacionais.

Por ora, a moeda dos EUA continua a ser a espinha dorsal do sistema monetário e financeiro internacional

Embora líderes como Vladimir Putin esbravejem sobre a iminente derrocada do dólar, o fato é que alternativas viáveis ainda não emergiram para rivalizar com os mercados financeiros profundos e líquidos que os EUA oferecem. Apesar das capacidades materiais da China – como sua vasta população, economia de grande escala, significativo volume comercial e crescente poder militar – e de seus esforços para expandir o uso internacional do renminbi, a disparidade permanece evidente. Enquanto o dólar domina 44,4% dos pagamentos globais, a moeda chinesa representa apenas 3%. Nas reservas internacionais, a diferença é ainda mais acentuada: 58,9% ante 2,5%, conforme as estimativas do Congresso estadunidense. Por ora, o dólar continua a ser a espinha dorsal do sistema monetário e financeiro internacional.

A estratégia de Trump, focada em tarifas e ameaças, não contribui para fortalecer a confiança global na rede complexa que sustenta o dólar como divisa-chave. Crises recentes, como a Guerra na Ucrânia, têm acelerado a busca por alternativas ao dólar. Sob o impacto das sanções impostas pela elite financeira ocidental, a participação do renminbi nas transações cambiais na Rússia saltou de 53,6% para 99,6% em apenas um mês.

O uso do dólar como arma geopolítica tem funcionado como um alerta para outras economias, destacando os riscos de depender exclusivamente de um sistema monetário e financeiro internacional dominado pelos EUA. Nesse contexto, as discussões sobre a criação de uma moeda dos BRICS ganharam relevância, especialmente nas cúpulas de Johannesburgo (2023) e Kazan (2024), refletindo o crescente desejo de diversificação e maior autonomia econômica em relação ao dólar.

Esse cenário traz à tona o conceito da “Armadilha de Tucídides”, popularizado por Graham Allison. Quando uma potência emergente ameaça o ­status quo reinante, o conflito entre a nova força e a antiga hegemonia torna-se quase inevitável. A rivalidade monetária entre EUA e China soma-se àquelas nas áreas como comércio, tecnologia e finanças. A aposta de Trump é sustentar a hegemonia do dólar pela coerção de aliados e rivais. Resta saber se essa estratégia terá os efeitos desejados ou se acelerará a fragmentação global. Neste caso, Trump terá de lidar com o risco de que as águas turbulentas das finanças abasteçam ainda mais o moinho das alternativas que ele deseja inviabilizar. •


*Luiza Peruffo é PhD pela Universidade de Cambridge e professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; André Moreira Cunha é pesquisador do CNPq e professor titular no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem os comentários e a generosidade intelectual de Daniela Magalhães Prates.

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Hegemonia em xeque?’

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