Economia

Guerra comercial com a China turbina o custo das empresas dos EUA

O mundo fica à mercê do embate. O problema é o atrelamento da economia ao sistema financeiro

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Alarmes disparam desde o início do mês diante de sinais inconfundíveis do fracasso da estratégia de guerra comercial de Donald Trump contra a China e expõem a dificuldade de a economia estadunidense engrenar um novo ciclo de investimentos e o aumento do risco de nova crise mundial. O penúltimo surto de pânico aconteceu na terça-feira 6, quando o Banco Popular da China desvalorizou de supetão o yuan em 2% em 24 horas, após um declínio paulatino acumulado em 11,4% desde março do ano passado. A variação, entenderam analistas, provavelmente neutralizaria o efeito do novo aumento de tarifas de importação em 10% sobre produtos chineses, equivalentes a 300 bilhões de dólares, anunciado pouco antes por Trump. 

O presidente dos Estados Unidos acusou, entretanto, o golpe e adiou para dezembro parte do aumento, enquanto o banco chinês valorizava o yuan e os mercados financeiros puderam, enfim, voltar à situação de alívio precário imperante desde a crise de 2008. A relativa calmaria não duraria mais de uma semana. Na quarta-feira 14, os jornais noticiaram a queda do PIB da Alemanha diante do receio de retração do comércio global, desaceleração do PIB da Zona do Euro no segundo trimestre e sinalização de recessão nos EUA pela primeira vez em 12 anos.

O problema, fica claro para uma quantidade crescente de especialistas e empresários, é a economia concreta hoje atrelada ao sistema financeiro e isso vale também para o Brasil, que está com um pé na recessão e, embora possa obter ganhos imediatos com a suspensão da compra de soja estadunidense pela China, perderá com a tendência de queda dos preços da commodity por causa do embate comercial e da participação declinante dos produtos industrializados nas exportações. O ministro Paulo Guedes confessou, ao pedir de um a dois anos para tirar o Brasil da estagnação, incapacidade ou inapetência para tomar medidas imediatas passíveis de gerar postos de trabalho a curto prazo e com isso dinamizar o mercado, objetivo do programa emergencial lançado pelo Partido dos Trabalhadores para a criação de 7 milhões de empregos a curto e a médio prazo. 

Há ainda os riscos da política governamental desastrosa nas relações exteriores e em relação ao meio ambiente. A China, alvo de ataques de Bolsonaro desde quando ele era candidato, adiou a visita da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, marcada para o domingo 18, para tratar da liberação das exportações de novos frigoríficos brasileiros. O presidente da Suzano, Walter Schalka, disse recear a “contaminação negativa” do setor, que planta todas as árvores utilizadas no fabrico de papel e de celulose, a partir da repercussão externa negativa do trato do problema ambiental pelo governo e fez um chamamento à indústria em defesa da Amazônia. “Os produtores que estão alegres hoje vão chorar amanhã, pois o discurso de Bolsonaro pode fechar mercados para o Brasil no exterior”, alertou a ex-ministra da Agricultura Kátia Abreu. 

O problema é o atrelamento da economia ao sistema financeiro

As evidências do fracasso da guerra comercial comandada por Trump incluem, entre outras, a constatação do Bank of America Merril Lynch de que 70% das 102 empresas dos Estados Unidos que publicaram balanços do segundo trimestre relataram efeitos negativos das elevações de tarifas sobre importações da China, acima dos 50% registrados no trimestre anterior.

“A guerra comercial baseia-se em visões falsas sobre como o mundo funciona”, alertou no início do mês o economista Paul Krugman, ganhador do Prêmio Nobel. As provas, prosseguiu, são esmagadoras: as tarifas de Trump não têm muito efeito sobre a balança comercial. Várias tarifas na prática prejudicam a indústria dos EUA porque incidem sobre bens intermediários utilizados pelas empresas em seus processos de produção e, desse modo, elevam custos.

As críticas de outro Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, vão na mesma direção: “Trump prometeu reduzir o déficit comercial, mas sua profunda falta de compreensão da economia fez com que o saldo negativo aumentasse. Os economistas tentaram repetidamente explicar a ele que os acordos comerciais podem afetar os países dos quais os EUA compram e vendem, mas não a magnitude do déficit geral. A má administração da economia por Trump é monumental”. 

Riscos. Os ganhos com a soja seriam efêmeros e papel e celulose podem perder com a má imagem ambiental do Brasil, receia Schalka, da Suzano

A guerra tarifária enfraquece ainda mais uma economia que padece de desigualdade crescente e falta de investimento produtivo, atrofiado pela canalização dos lucros das empresas para a recompra das próprias ações. “O maior problema está à espreita. Os Estados Unidos perderam sua capacidade produtiva e seu know-how interno. Nós não sabemos mais como fazer muitas coisas. Isso atingiu proporções epidêmicas no setor de defesa, onde operações anteriormente rotineiras, como lançar um submarino, estão agora além das capacidades dos EUA. A Boeing, nossa principal fabricante de aeronaves, aparentemente perdeu a capacidade de construir aviões seguros. Quando você, implacavelmente, terceiriza para cortar custos por décadas, você não apenas perde empregos, mas também a inteligência, o know-how e a ‘memória muscular’ para fabricar. E em vários setores isso foi o que ocorreu”, disparou David Dayen, editor-executivo do The American Prospect

Para o economista J. Bradford Delong, professor da Universidade da Califórnia, os EUA vivem o pânico de uma superpotência em declínio. Em vez de formar uma aliança para conter a China, diz, Trump retirou o país do acordo comercial Trans-Pacífico e continua a apresentar exigências “randômicas e incoerentes”, tais como eliminar de imediato o déficit comercial bilateral EUA-China. 

Críticas. Várias tarifas incidem sobre bens intermediários e prejudicam a indústria, aponta Krugman. A má administração da economia por Trump é monumental, dispara Stiglitz

“Há um medo crescente de que esteja ocorrendo um ‘Eclipse do Ocidente’. O medo de ascensão da China ocupa a vanguarda desses medos. Há uma grande ansiedade quanto à hipótese de a China substituir o Ocidente como força dominante na economia global, nos negócios, na inovação, na governança global e nos assuntos militares. A possibilidade de um ‘choque de civilizações’ tornou-se um tópico de discussão aberta no mundo desde a crise de 2008”, constatou o economista Peter Nolan, professor da Universidade de Cambridge e consultor do governo chinês no livro China and the West: Crossroads of Civilization

Uma parcela do medo ocidental apoia-se em desinformação, inclusive na falsa visão da China como país comunista, quando na verdade “o papel do mercado e do setor não estatal expandiu-se a ponto de as forças do mercado serem agora dominantes. O setor de propriedade do Estado encolheu para cerca de um quarto do produto nacional. A economia chinesa tornou-se parte integral do sistema econômico global. Desde 1978, o Estado chinês regressou gradualmente à relação pragmática entre o Estado e o mercado que caracterizou a política chinesa por mais de 2 mil anos”, ensina Nolan. 

Teme-se que o ocaso do Ocidente esteja em curso

A atual guerra comercial EUA vs. China foi precedida, é importante lembrar, de uma relação de interesse mútuo ou “casamento de interesses”, diz o economista Stephen Roach, professor da Universidade Yale, no livro Unbalanced: The Codependency of America and China. “Os Estados Unidos tinham exatamente o que a China precisava – um enorme e crescente volume de demanda de consumo. E a China tinha exatamente o que a América precisava – um suprimento ilimitado de bens baratos e poupança excedente. O fornecedor final alimentou o maior consumidor do mundo, assim como o consumidor final prosperou com base no que o nascente produtor chinês foi capaz de oferecer”, sintetiza Roach. “O problema, e isso não pode ser atribuído aos chineses, é que a demanda voraz dos consumidores dos Estados Unidos dependia da areia movediça das bolhas de ativos e crédito.”

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