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Garrote no pescoço

Pressão empresarial para revogar MP que limita uso de créditos de PIS/Cofins oculta motivações inconfessáveis

Garrote no pescoço
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Farpas. Haddad diz não ter um “plano B”. Já o empresário Rubens Ometto, um dos dez mais ricos do País, esbravejou contra a “fúria arrecadatória” do governo Lula – Imagem: Redes Sociais/COSAN e Marcelo Camargo/ABR
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O laço dos setores produtivos, encabeçados pelo agronegócio, aperta a cada dia em torno do governo e fica claro que ao menos parte das reivindicações visa manter injustiças, e até ilegalidades, com prejuízo para as parcelas mais frágeis da sociedade. Um exemplo desse processo de asfixia foi a mobilização rápida e implacável de entidades empresariais para derrubar a Medida Provisória 1227, que buscava preencher o buraco na receita tributária provocado pela desoneração de 17 setores da economia e durou apenas oito dias. Na terça-feira 11, o presidente da Confederação Nacional da Agricultura, João Martins, anunciou em entrevista coletiva o sepultamento da MP. Em segundo lugar, falou o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Antonio Alban. O dirigente da CNI abandonara a comitiva governamental em visita à China para retornar às pressas ao País na sexta-feira 7 e combater a iniciativa.

Restou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, declarar a devolução da medida ao governo. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que não existe um plano B pronto. Os técnicos da pasta estão à disposição do Senado para buscar uma solução e ainda que está em análise o combate ao uso fraudulento de créditos de PIS/Cofins.

Os antecedentes da mais nova derrota do governo envolveram falas ásperas de lado a lado. Coube ao empresário Rubens Ometto chutar a porta, em discurso durante encontro de empresários no Guarujá, no sábado 8. Presidente do Conselho de Administração da Cosan, conglomerado com negócios nos setores de açúcar, álcool, energia, lubrificantes e logística, um dos dez maiores bilionários brasileiros no ranking da revista Forbes, Ometto mirou a “fúria arrecadatória” da Fazenda e não contemporizou. Criticou o arcabouço fiscal e partiu para cima do governo: “Soltam normas para te morder, para te autuar. Isso aconteceu com a mudança na regra do Carf, com a mudança no aproveitamento do ágio de aquisições, mudança no crédito presumido do IPI e com a mudança no crédito do PIS/Cofins que saiu nesta semana”, disparou o empresário, sob aplausos.

Dario Durigan, secretário-executivo da Fazenda, e Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, contra-atacaram. “Tem político que gosta de palco, mas agora é empresário que está precisando descer do palanque”, ironizou Mercadante. Durigan lembrou que a Fazenda tenta apenas acertar “contas extras criadas no Congresso”.

A Medida Provisória buscava recuperar 20 bilhões de reais suprimidos da arrecadação federal

Segundo a Fazenda, a MP visava, além de compensar a prorrogação da desoneração da folha de pagamento dos setores envolvidos, corrigir uma distorção na sistemática do PIS/Cofins. O desvirtuamento consiste em afastar a tributação de algumas empresas e, em alguns casos, isso gerou uma situação de tributação negativa, na qual o governo passava a ser devedor. “Em casos remanescentes identificados pela Receita Federal, as empresas não só não pagam, como recebem como se fosse uma subvenção do governo brasileiro em dinheiro, no ressarcimento desses créditos, que representam 20 bilhões de reais”, explicou o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, em entrevista coletiva.

Em relação ao PIS/Cofins, disse o secretário, o contribuinte calcula o débito sobre o valor do seu faturamento e abate a mesma alíquota que é aplicada na saída sobre o valor dos insumos, ainda que não haja tributação sobre o valor desses insumos e que, portanto, não tenha havido qualquer recolhimento anteriormente. “De cara, já se sai com uma possível distorção, que é agravada por uma dezena de leis que estabeleceram uma série de créditos presumidos, créditos fictícios, alíquotas reduzidas, que geram esse acúmulo do crédito.”

A descrição de Barreirinhas sobre o modus operandi das empresas em algumas situações identificadas, mas não explicitadas pela Receita, revela de modo contundente por que uma das motivações da enorme mobilização empresarial da sexta-feira 7 foi cuidadosamente ocultada: “Imagine que uma empresa retém do seu empregado o valor da contribuição previdenciária e ele, empregado, é o contribuinte. Desconta 11% do salário para a Previdência e retém o Imposto de Renda na fonte. O empregado é o contribuinte, ele ‘pagou’ no momento em que isso é abatido do salário dele. O que o empresário deveria fazer numa lógica normal, como responsável tributário pela retenção e recolhimento do tributo? Entregar ao Fisco. O que ele está fazendo nesses casos? Fica com o dinheiro, pega aquele crédito acumulado e entrega para o Fisco. (…) É como se nós estivéssemos financiando esse empresário que retém o dinheiro vivo descontado do salário dos empregados e entrega um crédito, muitas vezes presumido, fictício, em pagamento ao Fisco”.

“Desde o início do governo Lula 3, o enredo repete-se a cada dia”, chama atenção o historiador Jurandir ­Malerba, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq. A “resistência ruidosa do empresariado” contra a MP que restringe a compensação de créditos tributários de ­PIS/Cofins,­ para compensar a desoneração da folha de pagamentos, é um exemplo. “O empresariado e seus prepostos no Parlamento e no Banco Central uivam contra a ‘sanha arrecadatória do governo’, ao mesmo tempo que exigem respeito à meta de inflação, ou seja, juros estratosféricos e estrangulamento de políticas públicas. Tanto no caso do ataque ao instituto da delação premiada quanto no da política tributária, a lógica é a mesma: o uso casuístico e oportunista da legislação, sempre em proveito de seus interesses escusos e contra os da população.”

Cobertor curto. Mercadante pediu para os empresários “descerem do palanque”. O Farmácia Popular é um dos programas atingidos pelo recente corte orçamentário – Imagem: Rodrigo Nunes/MS e Cleber Martins

O ataque à delação premiada a que ­Malerba se refere é uma armação do presidente da Câmara, Arthur Lira, com a reapresentação, acompanhada de pedido de urgência na votação, de um projeto para invalidar delações feitas na prisão, inclusive a do tenente-coronel Mauro Cid, medida que beneficiaria Bolsonaro.

As derrotas recentes do governo incluem as perdas com a manobra especulativa nos mercados de dólar e de juros na sexta-feira 7, no auge da pressão contra a MP do PIS/Cofins. Os mercados foram para o espaço após reunião do presidente do Banco Santander, acompanhado de executivos da casa e clientes, entre eles funcionários de outros bancos, em um encontro costumeiro com esse formato, mantido entre ministros da Fazenda e as principais instituições. Segundo relato de um participante, bastou o ministro dizer que levaria temas em discussão ao presidente da República para desencadear especulações sobre a provável redução de poder de ­Haddad, desdobradas em apostas financeiras na mudança do arcabouço fiscal e da meta de juros. Exatamente a mesma afirmação foi feita em encontros semelhantes pelo ministro, sem causar qualquer perturbação, reconheceu o observador. A confusão foi tão grande que Haddad considerou necessário convocar uma reunião de jornalistas para explicar o sucedido e reclamar de “vazamento de informação falsa”. No momento do encontro na Fazenda, contavam-se às dezenas as declarações de associações empresariais contra a MP que seria derrubada dois dias depois.

Outra derrota, desta vez autoimposta, foi a anulação do leilão de compra de arroz pela Conab para segurar o preço do produto, que ameaça disparar em meio a notícias contraditórias sobre dificuldades com a safra e seu transporte. A desistência ocorreu em meio a denúncias de favorecimento do filho do secretário da Agricultura, Neri Geller, sócio de uma das empresas vencedoras. O fato de o representante da Confederação Nacional da Agricultura encabeçar o informe aos jornalistas sobre a derrubada da MP não é casual e prende-se a uma prática sistemática de espoliação, aponta Malerba.

O maior inimigo do Brasil ao longo de sua história, sublinha o professor, foram suas classes dominantes e dirigentes. “Nunca houve em nosso percurso qualquer período de distensionamento. O povo, isto é, os pobres, os trabalhadores e trabalhadoras, as populações indígenas e pretas, os excluídos do campo e da cidade, esteve sempre acuado por essa elite vira-lata, que há 500 anos iniciou a exploração predatória do País e vem reiterando o mantra de que o Brasil deve cumprir sua vocação natural de celeiro do mundo e que estamos em posição estratégica na economia global por nossas reservas minerais, como se elas fossem inesgotáveis.”

Os críticos da “sanha arrecadatória” exigem respeito à meta de inflação, mesmo com juros estratosféricos e estrangulamento de políticas públicas

O historiador chama atenção para o fato de que o pau-brasil começou a ser extinto já no primeiro século de colonização, concomitante ao início da guerra contra os povos originários, reiterada no decreto de maio de 1808 de Dom João VI. A cultura açucareira e a mineração também se expandiram, deixando para trás paisagens exauridas. “A primeira forma do agronegócio no Brasil foi a plantation escravista, latifundiária e monocultora. No século XIX, a Mata Atlântica quase desapareceu com a expansão da cultura cafeeira. Hoje, ultrapassando o ponto de não retorno do colapso ecológico global, vemos essa elite predatória avançar sobre a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado e o Pampa com uma voracidade suicida.”

A lógica desse sistema produtivo, prossegue Malerba, sempre foi explorar o comércio de metais e commodities tropicais para abastecer o mercado capitalista. Isso incidiu violentamente nos regimes de propriedade e trabalho e na organização social do País. O historiador identifica uma “condição de colonialidade perpétua a que parece estarmos fadados” e que se explica, historicamente, por essa elite de mando mesquinha e egoísta que se reproduz há gerações. As consequências sociais dessa lógica se traduzem em números nefastos, por exemplo, da concentração de renda.

A resistência do governo ao aumento avassalador das pressões tem um limite. Há indícios de que ele começou a entregar os anéis, sugere a notícia divulgada na segunda-feira 10, de que cortes de gastos atingem o programa Farmácia Popular, Auxílio Gás, obras em rodovias, a Polícia Federal e o Exército. •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

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